California Dreamin’

Os Estados Unidos estão na memória coletiva de todos nós

Depois dos parques do deserto, saímos em direção à Costa Oeste. No caminho, passamos por Las Vegas, no estado de Nevada. Não somos dos cassinos nem dos casamentos relâmpagos com Elvis – uma estadia lá estava fora dos nossos planos. Mas fizemos questão de pelo menos entrar na cidade e conhecê-la da janela do nosso motorhome, o Paçoca.

Las Vegas é uma tradução possível do espírito americano. Lembrei-me de um livro que fez a minha cabeça na juventude, “Tudo é sólido desmancha no ar”, do já falecido sociólogo Marshall Berman. A frase que dá título ao livro é de Marx e, para Berman, explica a lógica da modernidade: nada é feito para durar, tudo é feito para ser destruído e construído novamente. A impressão que a gente tem é que as cidades são sempre recém-inauguradas nos Estados Unidos. É algo radical, que me parece não existir em nenhum outro lugar. Alguns entendem que isto expressa uma falta de alma das cidades daqui, mas me parece que a questão é outra: há uma alma, é a alma da própria modernidade. Há o desejo da novidade. Em parte, explica a pujança da economia gringa.

Las Vegas: a cidade dos cassinos e dos casamentos relâmpagos. Foto: André Tezza

Depois de finalmente entrarmos na Califórnia, planejamos dormir não muito longe da fronteira com Nevada, próximos de um lugar chamado Yermo, um vilarejo minúsculo no meio do deserto – o nome não engana, é um ermo mesmo. Buscar um lugar para dormir é sempre uma aventura dentro da aventura. O Paçoca é grande – dormir nas ruas das cidades é complicado. Na verdade, agora que já estamos há mais de um mês viajando, podemos dizer que, nos Estados Unidos, qualquer cidade um pouquinho maior já tem muitas restrições para pernoitar dentro de um motorhome.

Sim, os campings estruturados estão em todos os lugares, mas a grande maioria deles não é barata – a média sai em torno de U$50. Os campings mais baratos são públicos, normalmente ficam dentro de parques e florestas – mas como são lugares charmosos e o preço é bom, para a alta temporada, é preciso reservar com antecedência. Temos procurado por alternativas gratuitas e já dormimos em postos de gasolina, cassinos e as chamadas “terras públicas”, isto é, lugares públicos demarcados em que o camping é permitido e às vezes há alguma infraestrutura. Para encontrar os lugares dos pernoites, temos usado um arsenal de aplicativos: iOverlander, Campendium, Allstays e o bom e velho Google Maps.

Próximos de Yermo, primeiro tentamos uma terra pública. Um dos aplicativos indicava um ótimo camping selvagem, como estávamos fazendo até então no Arizona. Mas, chegando lá, entramos em uma estradinha de terra bem ruim e à medida que adentrávamos, vimos cruzes e carros queimados. A coordenada que o gps indicava para dormir tinha um carro abandonado – parecia um ponto de drogas, mas talvez a gente tenha visto séries policiais demais. Para piorar tudo, nada de vizinhos – normalmente temos vizinhos com outros motorhomes nos lugares marcados pelos aplicativos, o que nos deixa mais tranquilos. Estava esquisito demais e voltamos para Yermo, onde achamos um camping pago.

Quando chegamos, já era tarde e o escritório de check-in estava fechado, mas havia um aviso: se você chegar depois do horário de serviço, escolha qualquer lugar livre e deixe um envelope com a quantia certa no buraco da porta. Estes procedimentos de autosserviço são bem frequentes aqui. As pessoas simplesmente confiam uma nas outras. Uma vez li uma pesquisa mostrando um ranking de confiança em cada país. Nos países em que há mais confiança, invariavelmente, há mais desenvolvimento. Os Estados Unidos estão na ponta de cima da tabela. O Brasil, na ponta de baixo.

Fran comigo, sonhando com a viagem pela Califórnia, que estava apenas começando. Foto: André Tezza

Fomos à lavanderia e para conseguir os “quarters”, as moedas de 25 centavos das máquinas de lavar, precisamos usar uma outra máquina, a de troco, que descobrimos que ficava dentro de um bar, na frente do camping. Este bar, meus amigos, foi o roots do roots, uma das cerejas do bolo da viagem até aqui. É um bar de beira de estrada (da beira da estrada de Yermo, veja bem), em que pessoas da classe trabalhadora vão ali tomar a cervejinha depois de um dia de trampo. Eles deixam o dinheiro em cima do balcão, pagando as moedinhas para a dona, uma jovem morena, que era animadíssima e cantava alto a música country do disk jockey. Havia mesas de sinuca, um balcão comprido e a maquininha de troco dos “quarters”.

Eu nunca tinha estado em um bar assim. Mas todos nós já vimos este lugar. Ele está no nosso imaginário midiático. É impossível ficar indiferente à força da cultura americana sobre o mundo. Ali, eu e a Fran tomamos uma cerveja, sonhando com a jornada pela Califórnia, que estava apenas começando.

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