A música e a estrada

A viagem é um tema que os artistas costumam frequentar. Aliás, mais do que isso, a viagem está em alguns dos momentos mais importantes da história da arte. Basta lembrar que, só para citar um único exemplo, a “Odisseia”, um dos marcos que funda a literatura ocidental, é a história de uma viagem.

A partir do século XX, a popularização dos carros trouxe novas formas de relacionar a arte com a viagem. Road Movies – os filmes em que a ação se passa na estrada – ou ainda os álbuns da música feitos para se escutar dirigindo são alguns exemplos. A novidade das rodovias, portanto, trouxe novidades para a criação artística. Talvez porque a estrada traga um fascínio inconfundível para os sentidos.

Quando um carro ganha velocidade, produzindo aquele zumbido constante do motor em movimento, nos sintonizamos com alegrias muito próprias. Em “México”, um belo livro de viagens dos anos 60, Erico Verissimo assegura que uma das 100 coisas mais gostosas da vida é olhar a paisagem a partir da janela de um carro ou de um trem, deixando o pensamento correr solto, com as associações espontâneas de imagens e de ideias. Parece existir um espírito diferente da vida com o corpo em movimento — há um fio que une os peripatéticos aos viajantes. Quando não estamos imóveis, os devaneios parecem ganhar brilho e as preocupações podem ser mais suaves.

Um dos artistas que mais me marcaram quando eu comecei a explorar com mais profundidade a música foi o guitarrista de jazz Pat Metheny. Sobretudo no início de sua carreira, suas composições exploravam as interações entre música e a viagem de carro. Durante três anos, o grupo de Metheny viajou por todo os Estados Unidos e o Canadá em uma van. De Dallas para Quebec, de Seattle para Chicago, de norte a sul, de leste a oeste. Metheny afirma que fez quase 500.000 quilômetros (!!!) nestas viagens, sendo ele e o pianista Lyle Mays os dois principais motoristas. Eles tinham pouco mais de vinte anos e aquelas jornadas ajudaram a transformar a banda em um sucesso mundial, similar aos sucessos da música pop, com estádios lotados para ouvi-la.

A viagem não era somente uma necessidade para os destinos dos shows, mas um tema fundamental do grupo de Metheny. Estava no nome dos álbuns (“Offramp”; “American Garage”; “Letter from Home”; “Travels”; “The Road to You”), no nome das músicas (“Are You Going with Me”; “Goodbye”; “Goind Ahead”; “The Fields, the Sky” e muitas outras) e, claro, também nas fotografias de viagem que ilustravam a capa dos discos (imagens de trailers, estradas, placas, paisagens).

“American Garage”, do Pat Metheny Group (1979). Fotografia da capa: Joel Meyerowitz

A foto de capa do álbum “American Garage”, com trailers antigos, é de um dos grandes mestres da fotografia contemporânea: Joel Meyerowitz. American Garagem não envelheceu bem — é um álbum com o som marcado do fusion jazz dos anos 70. Mas, “Offramp”, de 1982, permanece como um dos álbuns fundamentais da história do jazz — ainda hoje, volto à faixa “Are You Going with Me” quando viajo de carro.

Vale destacar que um dos músicos de “Offramp” é o percussionista pernambucano Naná Vasconcelos, que participou de vários álbuns da banda de Pat Metheny. Quando ouvimos a percussão de Naná, não ouvimos somente o tempo, ouvimos um espaço, um lugar, uma imagem, uma viagem. São as matas, os bichos, as pessoas, os barulhos do Brasil.

A música da viagem não é só uma manifestação sobre o tempo, mas também um espaço. Para além do espaço das ondas sonoras, é também o espaço da memória, o espaço da história, o espaço mental de um lugar.

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