Rock Camp: Uma comunidade que vive e dá vida

Em janeiro de 2020 eu participava pela segunda vez do grupo de voluntariado do Rock Camp Curitiba. Como nesse momento ainda não tínhamos nenhum caso de Covid-19 registrado no Brasil, não pensei que levaria cerca de dois anos para estar com esse grupo novamente. Também não sabia que antes de me ver entre campistas e voluntariado de novo, eu viveria o pior dia da minha vida.

Tenho um amigo que diz que nós começamos a morrer no segundo no qual somos concebidos. Para ele, o processo de envelhecimento nada mais é do que a morte trabalhando a longo prazo. Nesses dois anos eu cheguei à conclusão de que na verdade, a gente começa a morrer após viver esse pior dia das nossas vidas. Para os mais sortudos isso só vai acontecer no final da vida, para outros, ainda na infância. Para mim, esse dia chegou aos 36 anos, em outubro de 2020, quando perdi minha mãe para a covid.

Não vou falar aqui sobre as muitas implicações desses dois anos de pandemia na nossa forma de viver. Todos temos consciência de que existem inúmeras histórias individuais carregadas de medo, trauma, raiva e perda. Eu sei que se soubéssemos o que teríamos pela frente, talvez tivéssemos vivido de maneira diferente até ali. Se eu soubesse que levaria dois anos para estar cercada dessa comunidade novamente, eu teria dançado mais no Rock Camp 2020? Eu teria insistido nas aulas de bateria que eu decidi fazer ainda no camp de 2019, mas que pela correria da vida, nunca levei adiante? Nesse momento, após quase 700 dias de pandemia no país, é impossível sabermos do “e se”.

O que sabemos é do concreto e o concreto é que eu comecei a morrer na pandemia. Em alguns dias eu achei mesmo é que já havia morrido, que carregava nas idas ao supermercado um corpo sem vida e sem vontades. E sendo alguém que morreu essa morte simbólica, sei que a implicação disso é ver, dia após dia, os sentimentos todos irem escoando e sumindo. O medo dá lugar à raiva, que por sua vez, dá lugar à tristeza. A tristeza pesando naquele corpo sem alma e se transformando em algo ainda pior, um “não sentimento” que lança no vazio qualquer tentativa de querer algo, de querer, veja bem, viver.

E então, a vida se torna um processo mecânico, um corpo no mundo. E a gente aceita que talvez essa é a realidade a partir de agora, que vai ter que mecanicamente decidir onde ir e onde não ir, o que fazer e o que deixar para lá. Foi nessa racionalidade crua que eu decidi me inscrever para o voluntariado do Rock Camp 2022.

Mas vivendo a não vida, o que falta em sentimento, sobra em reflexão. E nos dias que antecederam o início do camp, minha mente ficou completamente tomada pela possibilidade de não dar conta, de não ser capaz de estar novamente entre as pessoas que há dois anos me viram cheia de vida. Ainda assim, mecanicamente eu decidi vir.

E estando aqui, eu finalmente senti. Primeiro algo quase imperceptível, mas genuinamente impactante, uma vontade de estar aqui. Depois, a noção de que faço parte de algo que após dois anos de isolamento, tem ainda mais impacto do que já tinha lá em 2020. Um pouco mais adiante eu me vejo comovida com o pertencimento que eu já não lembrava que sentia quando estava com essas pessoas, com essa comunidade. Quando eu me dou conta de que o vazio se tornou menor, dando espaço a sentimentos que eu já não esperava sentir, vejo que depois de dois anos, finalmente sou capaz de colocar no texto o que até agora existia somente dentro de mim. Acredito então que é possível, posso curar, posso viver.

Campistas sairão do Rock Camp sabendo tocar um instrumento e pensando sobre uma série de questões importantes, que talvez não pensassem antes, o voluntariado sairá com relações profundas e a certeza de que a cada camp, o mundo se transforma um pouco. Isso também é verdade para mim, mas no meu caso, além desse sentimento, levo também a convicção de que no Rock Camp Curitiba 2022, eu de fato revivi.

Não sei o que vou sentir no restante de 2022, não sei o quanto ainda tenho a caminhar nesse processo de luto e cura. Mas uma coisa eu sei, “a gente pode, a gente faz”.

Lis Claudia tem formação em comunicação social e trabalha com projetos de comunicação corporativa. É voluntária do Rock Camp Curitiba há 3 anos.

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