Um pranto mudo

A sonhada resistência aos golpistas não aconteceu e o 1.º de abril de 64 separou vidas

O golpe militar de 1.º de abril de 1964 interrompeu nossas carreiras e sonhos e nos empurrou para uma luta desigual.

Na véspera, ainda resistimos nas ruas da antiga capital do estado do Rio de Janeiro. As notícias eram de movimentos de tropas em Minas Gerais e de manifesto golpista. Na tarde do dia 31 de março, organizamos uma passeata e saímos em marcha pela Avenida Almirante Amaral Peixoto, em Niterói, gritando palavras de ordem em defesa do governo João Goulart, da democracia e das reformas.

Depois de participar de inúmeras reuniões noite adentro, fui pra casa. Foi uma noite de insônia e apenas o dia amanheceu parti pra Niterói. Deu uma tristeza danada ver as ruas tomadas por tanques de guerra e o Sindicato dos Operários Navais ocupado por tropas do Exército.

Fui pra casa do Geraldo Reis em busca de orientação e lá estavam o deputado Afonsinho, Miguel Batista e outros dirigentes do PCB. Era um vai e vem agitado, numa tentativa de coordenar a greve geral.

Foi então que eu pedi ao Aquiles Reis, à Lia Rossi e ao Rodolfo Veloso que me levassem a São Gonçalo, para eu me despedir de meus pais e apanhar algumas mudas de roupa. E lá fomos nós, a base do PCB no Liceu Nilo Peçanha, no Gordini da Lia Rossi.

Chegamos em casa por volta das onze horas da manhã. Mamãe estava na cozinha e quando ela nos viu, diminuiu o volume do rádio, que tocava marchas militares, tirou o avental e me recebeu com beijos. Não foi nem preciso que eu revelasse o motivo de minha chegada, assim, sem mais nem menos. Sua intuição materna era suficiente para que ela percebesse o que estava acontecendo. Por isso não disse nada. Preparou o café com leite, passou a manteiga no pão, e ficou muda enquanto comíamos. Em seguida nos acompanhou até o portão. Beijei-lhe a face molhada pelas lágrimas de seu pranto mudo e fui.

Ficha de Aluízio Palmar.

Acabrunhados, voltamos pro apartamento de Aquiles, no bairro de Icaraí. Falei pro Geraldo que eu ia descer e ajudar o pessoal que estava na Estação das Barcas organizando a resistência ao golpe militar. O velho militante do PCB se levantou da poltrona e disse: “calma rapaz, essa quartelada de merda não vai durar muito tempo”.

Infelizmente a previsão otimista de Geraldo Reis não se consumou. Os golpistas ficaram no poder durante mais de 20 anos. Geraldo foi perseguido, demitido de seu emprego na Coletoria de Rendas e morreu de tristeza anos depois. Acabou virando nome de CIEP em Niterói, numa justa homenagem feita por Brizola. A resistência aos golpistas não aconteceu, e eu acabei partindo pra organizar a luta armada, sendo mais tarde preso, torturado e banido do país. Aquiles fez da arte, junto com seus colegas do MPB-4, uma forma de resistir. Lia Rossi seguiu carreira no cinema e foi a atriz principal do filme Bonitinha, Mas Ordinária, produzido por Jece Valadão. Do Rodolfo Veloso, nunca mais ouvi falar.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “Um pranto mudo”

  1. Olá, me chamo Natália e sou professora no Colégio Universitário Geraldo Reis, em Niterói. Estamos com um projeto de pré-iniciação científica chamado Memórias em Construção, nosso objetivo é trabalhar com a história do Colégio. Entretanto, as crianças ( bolsistas do projeto) estão curiosas para saber quem foi Geraldo Reis. Não encontramos muitas informações na internet, ao ler sua publicação entendi que vocês foram próximos. Você aceitaria participar de uma entrevista com as crianças para falar um pouco sobre a vida do Geraldo, ou conhece alguém que poderia?
    Desde já, agradecemos por sua disponibilidade.

    Um abraço!

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