Um bilhão de reais é dinheiro suficiente para investir em conservação no Paraná?

Estamos diante de uma oportunidade única: após décadas de investimentos inexpressivos, está disponível, para utilização do governo, um volume de recursos direcionado a ações voltadas à conservação da natureza

A Rede de ONGs da Mata Atlântica (RMA) é constituída de centenas de organizações voltadas à proteção do patrimônio natural e da melhoria da qualidade de vida de toda a sociedade. Suas atividades envolvem a manutenção de um olhar crítico e atento ao desempenho do governo e das corporações, bem como para um melhor esclarecimento público sobre a importância da conservação do Bioma Mata Atlântica, onde vive cerca de 70% da população brasileira.

O Paraná, com praticamente todo seu território inserido na Mata Atlântica, representa uma das grandes preocupações da RMA em relação à gestão do patrimônio natural, pois figura como a região que mais destruiu áreas naturais remanescentes nos últimos anos, comparado com os outros estados em toda a extensão do Bioma. Este texto aborda a discussão do uso dos recursos da Repar (Refinaria Presidente Getúlio Vargas), disponibilizados a partir de um Termo de Ajuste Judicial (TAJ), um tema de relevância extrema para o futuro do estado, decorrente de uma condição excepcional de investimentos que podem colaborar de forma determinante numa mudança do atual cenário.

Esse volume bastante relevante de recursos foi recentemente colocado subjudice pelo Ministério Público Estadual, em decorrência de tentativas de direcionamento distinto do que foi originalmente acordado entre as partes, colocando o destino de cerca de um bilhão de reais numa seara que reforça a posição tradicional de governos e de grupos setoriais mais influentes, ignorando a lacuna caracterizada por uma histórica desatenção com o patrimônio natural.

Os desastres ambientais que vêm ocorrendo são causados pela perda da biodiversidade e pelo advento das mudanças climáticas, fenômenos que atuam sinergicamente e que demonstram capacidade ilimitada para gerar prejuízos econômicos e sociais. Apesar de um passivo que nos coloca num cenário de riscos iminentes, decorrente de falta de investimentos e flexibilizações equivocadas frente a agenda de proteção da natureza, já fortemente fragilizada, práticas convencionais seguem presentes, permitindo o avanço da perda de resiliência ao que hoje denominamos de “eventos extremos”.

Estamos diante de uma oportunidade única: após décadas de investimentos inexpressivos, está disponível, para utilização do governo, um volume de recursos direcionado a ações voltadas à conservação da natureza. Essa condição decorre de um Termo de Ajuste Judicial que permitiu um aporte substancial de recursos de parte da Petrobras, em consequência do acidente ocorrido no ano de 2000 na Repar, em Araucária.

Um acordo firmado entre o MPE, MPF e os órgãos ambientais priorizou a proteção de nossos recursos naturais, permitindo que uma reestruturação inédita nas estratégias de conservação da natureza pudesse ser colocada em prática. 

No ano passado, entretanto, de forma unilateral, e em dissonância do que o acordo indicava como prioridade, o Governo Estadual adquiriu centenas de caminhões para doar às prefeituras, comprometendo uma fração desse montante num investimento pouco aderente ao atendimento das causas que vem acarretando cada vez maior fragilidade frente aos desequilíbrios da natureza.

O entendimento de que houve um desvio de finalidade impôs ao Ministério Público Estadual a contestação judicial do destino destes recursos. De fato, a pretensão até aqui defendida pelo Governo Estadual segue em direção ao uso da maior parte dos recursos disponíveis de forma distinta da sua finalidade original. No momento, aguarda-se que uma decisão de parte do Judiciário ou um entendimento prévio entre as partes envolvidas, permita que esses recursos estancados possam ter um destino adequado.

Cabe ressaltar que temas prioritários como saúde, educação, segurança, empregos, produção agrícola e industrial, assim como o bem-estar da sociedade, são agendas que perdem espaço significativo com os processos de degradação das áreas naturais que existem num determinado território. Sem uma garantia de proteção de nossos recursos naturais ocorre uma perda coletiva de todos os outros fatores que garantem nossa qualidade de vida.

Sem a existência de um arcabouço que mantenha a funcionalidade suficiente para que possamos continuar a dispor dos inúmeros serviços ecossistêmicos proporcionados pela existência de uma fração adequada de áreas naturais bem conservadas, todos outros indicadores sociais e econômicos e sociais são afetados, como já vem ocorrendo, de forma cada vez mais intensificada.

É necessário que haja maior atenção de parte da sociedade em relação a esse tema que é de fundamental importância, não havendo mais espaço para um comportamento de pouca mobilização e de passividade em relação às causas da sucessão crescente de mazelas decorrentes da ausência de uma agenda mais consistente para manter condições que garantam um maior equilíbrio em relação a natureza.

Ao seguir sustentando uma posição de negação a um cenário bastante crítico já presente no Estado do Paraná, o governo mantém uma retórica representada por décadas de exploração econômica e uso do território, sem que premissas básicas de proteção ambiental, que atingem negativamente toda a população, sejam levadas em consideração.

A discussão sobre o destino dos recursos provenientes do termo de ajuste judicial da Repar aponta para dois caminhos possíveis: a continuidade de uma política voltada ao atendimento de demandas de curto prazo, prioritariamente, direcionadas a atender o setor agropecuário e interesses políticos, sem sintonia como tema da conservação do patrimônio natural; ou para uma tomada de posição, a partir desta oportunidade sem precedentes, que permita uma reação frente as perdas sucessivas de capacidade de resiliência de nossos processos de desenvolvimento social e econômico decorrentes da degradação continuada da natureza, imposta pela falta de cuidados mínimos em relação a esse tema.

É de se esperar que administrações públicas que nunca realizaram investimentos mais significativos para proteger o patrimônio natural, como é o caso do Paraná, interpretem a possibilidade de uso dos recursos do TAJ Repar para estes fins como algo excessivo ou mesmo desnecessário. O modelo tradicional de gestão não permite que se abram espaços para uma evolução que deveria ter sido impulsionada há décadas atrás. Pesam mais as pressões econômicas para um desvio destes recursos para investimentos no que sempre foi uma prioridade máxima – o atendimento régio à pressão de grupos setoriais que invadem o terreno das instâncias públicas para impor suas vontades em detrimento do interesse maior da sociedade.

As fortes tempestades e cheias, com enormes impactos no campo e nas cidades, os cada vez mais longos períodos de estiagem e um amplo conjunto de mazelas decorrentes da destruição dos remanescentes naturais, vêm sendo contingências cada vez mais frequentes e intensas. E, evidentemente, não podem ser enfrentados com a aquisição de caminhões pipa, nem com ações paliativas para atender demandas imediatas.

É notória nossa incapacidade de reação quando ocorrem desastres ambientais, com ações de mitigação sempre muito pouco efetivas. Evitar que desastres ambientais sejam cada vez mais catastróficos depende de uma estratégia de longo prazo, com recursos suficientes que enfrentem de forma concreta o desafio de manter o patrimônio natural em condições de gerar a resiliência da qual tanto necessitamos.

Estamos diante de uma imperiosa chance de “virada de chave” com o reconhecimento da importância da proteção do patrimônio natural do Paraná, o que implica no uso destes recursos para o fortalecimento das instâncias de gestão focadas nesse tema, proporcionando o atendimento das reais prioridades no campo da conservação. Demanda-se, como nunca, uma visão estratégica com base na realidade presente, proporcionando estruturas suficientemente oxigenadas que nos desviem de uma direção retrógrada e equivocada, que gera cada vez mais prejuízos econômicos e sociais.

Seja a partir da decisão judicial que vem sendo aguardada, seja pela possibilidade de um acordo entre as partes, cabe propugnar por um pleito que atenda as reais prioridades do Estado do Paraná no campo da conservação da natureza. Um posicionamento que decrete nossa maior capacidade de protagonismo que vem sendo protelado globalmente – onde a natureza é parte intrínseca das formas amigáveis e longevas de desenvolvimento e da qualidade de vida da população.

Que esse aporte inesperado de recursos disponibilizado ao Paraná seja melhor percebido pelo atual governo, permitindo as condições mínimas para dar início a construção de um direcionamento coerente com a gravidade do momento. Contornar as pressões políticas setoriais e permitir uma ascendência qualificada no campo da conservação, mesmo que tardia, é o que se espera de um estado que pretende ser uma liderança na busca de um desenvolvimento racional, no qual a natureza seja parte indissociável de nossas atividades econômicas e de amparo a melhor qualidade de vida da população. 

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