Não enterrem meu coração na curva do Rio de Janeiro

Interior do Palácio de Queluz, Portugal – Corredor para um dos quartos

Imagem de uma imensa porta de carvalho fechada. Vemos um homem com vestimentas do século XVIII em pé ao lado de fora, com o ouvido colado na porta esperando pacientemente que ela se abra. Uma voz desesperada grita de dentro do quarto.

CORAÇÃO DE DOM JOÃO: – Não, não, não, não, não, não e não!

HOMEM: – Por favor, você está agindo como uma criança de 224 anos. O que as pessoas vão dizer? Olha que eu vou contar para o esôfago de sua mãe. Ponha um fato e vamos.

CORAÇÃO: – Jamais. Em hipótese alguma. Nunca mais eu coloco meus ventrículos naquela república bananeira de novo!

HOMEM: – Já está decidido. Você tem que ir. Faz parte de um acordo bilateral entre os dois países.

CORAÇÃO: – Só por cima meu cadáver.

HOMEM: – Escuta. Não crie problemas. É uma semaninha só e estamos de volta. Viagem de primeira classe. Já reservamos uma suíte maneira no InCor para você.

CORAÇÃO: – Não quero saber. Simples assim, me inclua fora desse ritual macabro. É muita necropolítica para o meu gosto.

HOMEM: – Ah, aprendeu uma palavrinha da moda…

CORAÇÃO: – Prefiro ficar em casa, comendo pastel de Belém e irrigando minha aorta como um velho aposentado decrépito que vive com uma bela aposentadoria vitalícia. Ou mortalícia, no caso.

HOMEM: – Você precisa ir. Você é importante para a História.

CORAÇÃO: – Eu sou só um órgão atrofiado que não funciona mais. Tipo a Procuradoria Geral da República em forma de um Phebo preto usado.

HOMEM: – E o que eu vou dizer a eles?

CORAÇÃO: – Diga que, para o bem todos e para a felicidade geral da Nação, eu fico! Aqui em Portugal.

HOMEM: – Vai ter uma motociata em sua homenagem, vai ser lindo. E depois um passeio de tanque de guerra pela avenida. Talvez te levem para um clube de tiro.

CORAÇÃO: – Me recuso a fazer parte de um clube de tiro que me aceite como sócio.

HOMEM: – Ora, vamos. Até comprei um desfibrilador novo para você. Dá para usar para fazer torradas.

CORAÇÃO: – Você tem ideia do perigo disso? Um descuido desses lunáticos e eu sou comido por um cachorro caramelo de rua. Se eu tiver sorte serei transportado por uma versão brasileira do Mister Bean. Ei, quem foi que teve esse ideia BIZARRA de levar um coração murcho e acinzentado feito um pau mole de baleia para um desfile militar no Brasil?

HOMEM: – Faz diferença saber de quem foi a ideia?

CORAÇÃO: – Eu tô velho para essas coisas. Minha aparência está péssima, não tomo sol, tenho mais rugas do que o elenco inteiro de Grace and Frankie. Aliás, por que não levam o fígado do Jânio Quadros? Ou o intestino de qualquer general da ditadura? É mais a cara dessa gente.

HOMEM: – Entenda. Você tem que ir. Já imprimimos até outdoor com sua imagem pelas ruas. Estão comparando sua visita com a do Papa João Paulo II.

CORAÇÃO: – Fale que eu tive um ataque cardíaco. Que eu peguei a varíola dos macacos. Melhor, que eu tive um piriri, hahaha.

HOMEM: – As pessoas estão esperando um discurso grandiloquente seu para mostrar a grandeza desse acontecimento histórico.

CORAÇÃO: – O que eu vou dizer? Tum-tum tum-tum tum-tum? Não. Esquece. Esses caras ainda vão querer me enfiar num culto com o Silas Malafaia. Tô fora.

HOMEM: – Eles precisam de você como símbolo dessa nova “independência”.

CORAÇÃO: – Não. Eu não quero ser idolatrado por um bando de troglodita jeca com barba de lenhador e óculos espelhados. Volte lá e diga para eles que meu nível de eletrólitos tá alterado e que é com imensa dor no coração que terei de rejeitar, respeitosamente, o convite.

HOMEM: – Pense bem. Vai ser uma festa bonita, vai ter um monte de gente de verde e amarelo festejando o golp… digo, o desfile. E você será a estrela da festa.

CORAÇÃO: – Estrela? Eu sou um cadáver fétido que mora num pote de formol, cara! Se fosse para a Zombie Walk eu até pensaria em ir…

HOMEM: – O futuro do Brasil está em jogo. Considere isso.

CORAÇÃO: – Escute, esse lance é muito medonho. Que tipo de sociedade civilizada faz isso? Você viu os EUA levarem o pênis do Bill Clinton no 4 de julho deles? Esses caras são doidos. Nível hard. Isso é MÓRBIDO, SINISTRO, ASQUEROSO.

HOMEM: – A propósito, você será recepcionado pelos editores do Brasil Paralelo.

CORAÇÃO: – Ah, me poupe! Esses caras são como um buraco negro.

HOMEM: – Ahn?

CORAÇÃO: – Distorcem a realidade.

HOMEM: – Como assim?

CORAÇÃO: – Esquece. Ei, quem está por trás disso são esses caras? Só pode. Meu Deus, eles se julgam descendentes dos Cavaleiros Templários! Que piada. Eles estão mais para Cavaleiros do Zodíaco, já que são herdeiros do Olavo de Carvalho, hahaha.

HOMEM: – Eles estão por cima da carne seca.

CORAÇÃO: – Sei. E agora querem a carne molhada de formol. Não, tô fora. Se eu tivesse algum tipo de líquido em meu corpo, fora formol, eu provavelmente conseguiria expelir algumas lágrimas por esse pobre país tomado por gente tosca.

HOMEM: – Sério. Eu tenho que levar você de qualquer maneira.

CORAÇÃO: – Olha, vamos fazer o seguinte. Eu tive uma ideia. Toma. Pega aqui

A porta se abre devagar, apenas uma fresta.

CORAÇÃO: – Pega.

HOMEM: – Argh. O que é isto?

CORAÇÃO: – O estômago de Dom Pedro. Leva. É para os pobres brasileiros.

HOMEM: – Hã?

CORAÇÃO: – Leva. Eles vão precisar muito mais de estômago do que de coração.

FIM

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