Morte de Dom e Bruno deixa imprensa de luto e em alerta

Violência tenta calar jornalistas e trabalhadores dos Direitos Humanos e é parte do projeto político bolsonarista

Desde que Dom Phillips e Bruno Pereira desapareceram na região do Vale do Javari, jornalistas e familiares de ambos temiam o pior. Na última quarta, dia 15 de junho, a Polícia Federal confirmou que um dos homens presos pelo crime confessou e apontou o local onde estavam escondidos os corpos. É um desfecho trágico não só para os que amavam Dom e Bruno, mas para todo o país.

Desde que o alerta do desaparecimento foi dado, a atuação do governo brasileiro tem sido vergonhosa, a ponto de acusar ambos de estarem em uma “aventura” e de dizer que o jornalista Dom Phillips era “mau visto” na região. O comentário, feito pelo presidente do país, não surpreendeu ninguém na imprensa brasileira porque o desrespeito ao trabalho dos repórteres (e as instituições de defesa dos direitos humanos) tem sido o modus operandi do bolsonarismo.

Mas ainda assim, esse crime tão bárbaro, tão sem sentido contra duas pessoas que estavam trabalhando deixa todos numa tristeza e num desespero difícil de descrever. É provável que Dom e Bruno tenham sido vítimas do tráfico, mas foram também da desumanização constante do trabalho da imprensa e de defesa dos direitos humanos e de qualquer um que trabalhe pelo avanço do projeto civilizatório.

Isso porque muito embora jornalistas de fato se coloquem em situações de risco – não por aventura, mas obrigação profissional– por muito tempo o colete ou crachá com a indicação IMPRENSA sempre representou uma certa proteção. Não só pela garantia (falsa) de repercussão de casos de violência. Mas porque a compreensão geral da importância do trabalho dos jornalistas sempre criou ambientes de respeito ao trabalho.

A violência contra jornalistas sempre existiu. Pessoas que estão no poder não gostam de serem chamadas a prestar contas, independente de sua ideologia ou afiliação política. No entanto, num passado não tão distante, a agressividade contra jornalistas sempre encontrou resistência.

O ex-presidente Lula, por exemplo, teve que voltar atrás quando tentou expulsar do país um repórter que escreveu sobre seus hábitos etílicos para o New York Times. O ex-governador Roberto Requião enfrentou uma chuva de críticas quando arrancou da mão de um jornalista um gravador. Essas reações detinham acessos mais violentos num país que sempre teve um histórico de matar muitos jornalistas.

Mas desde a ascensão do bolsonarismo o tom dos ataques à imprensa subiu. É parte do discurso violento desse movimento político desacreditar a função social do jornalismo e o trabalho de milhares de repórteres em todo país. Somos “fake news”, “petistas”, tudo menos o que somos de fato: trabalhadores dedicados ao interesse público.

O resultado desse discurso belicoso contra a imprensa é visível na rotina de cada um de nós. Casos de agressão contra jornalistas são diários. Gente que empurra repórter, tenta arrancar das nossas mãos celulares, que impede a atuação dos jornalistas e que agride verbal e fisicamente quem está trabalhando. O registro claro dessa mudança está no documentário Cercados, da Globoplay, feito em 2020. Mas também na mente e na saúde mental de todo jornalista do país.

A violência sancionada contra jornalistas é uma ação que tem efeitos nefastos, porque faz pouco para impedir eventuais erros de conduta dos veículos e donos de veículos, mas estoura na pele do trabalhador que está em campo. Aquele mesmo trabalhador que já lida com salários baixos, com a precarização e com cada vez mais dificuldades na obtenção de informações que deveriam ser públicas. Também afasta jornalistas e outros profissionais de áreas de conflito e de assuntos espinhosos e até mesmo do jornalismo como um todo.

E ela sempre vem acompanhada de uma insistente desumanização do jornalista, uma insistência em colar no trabalho na imprensa rótulos de “mídia golpista”, de “esquerda”, de “petista”, de “doutrinadora”. Essa estratégia, além de mostrar uma certa indigência intelectual dos críticos, que colocam todo tipo de veículo e conteúdo jornalístico ou não num único saco, também é bem sucedida em transformar trabalhadores com histórico de bons trabalhos prestados à democracia brasileira brasileira em uma massa disforme e sem personalidade, a quem é fácil agredir e – estamos vendo – matar.

A Amazônia pode estar distante de Curitiba, mas aqui a violência em todas suas formas prejudica a capacidade de todos os veículos jornalísticos de efetivamente cobrir temas complexos como a segurança pública, a violência de gênero e racial, entre outros. A prática diária do jornalismo está cada vez mais tomada de agressões gratuitas e de lembretes constantes de que no jogo político, o vale tudo inclui o desrespeito à vida de quem reporta os fatos.

É parte do trabalho jornalístico muitas vezes estar ao lado do “outro lado”, aquele que se opõe a quem está no poder, não em apoio a essa oposição, mas como parte do processo de apuração. Assim como é comum que ex-aliados e ex-funcionários descontentes sejam fonte de reportagens. Por questões circunstanciais são pessoas nessas posições que acabam permitindo que a imprensa acesse aquilo que o poder estabelecido não quer que se mostre.

Não é algo exclusivo desses anos sob o governo Bolsonaro. A imprensa esteve e está sempre onde a corda pode estourar. Repórteres de diversos veículos estavam junto aos professores em 29 de abril de 2015 bem como em 30 de agosto de 1988, quando os docentes foram massacrados pelas forças de segurança dos governadores Beto Richa e Alvaro dias, respectivamente. Acompanharam inúmeras ocupações de escolas, protestos de esposas de policiais militares, ocupações urbanas e no campo.

Em 2013, durante a série de protestos violentos em junho, dezenas de jornalistas ficaram feridos ao lado de manifestantes para poder registrar tanto os protestos quanto a reação a eles. A presidente à época era a petista Dilma Rousseff.

Na pandemia, por exemplo, esse acesso à “oposição” foi fundamental na denúncia de problemas graves no atendimento médico durante os piores momentos de transmissão da doença. Mas ultimamente essa relação tão comum e previsível virou plataforma para se acusar a imprensa de ser político partidária e aprofundar uma série de acusações infundadas e extremamente violentas que joga jornalistas na vala comum dos inimigos, junto aos defensores dos direitos humanos (ou defensores de bandidos, para os bolsonaristas) e qualquer um que ouse discordar do projeto radical de destruição do Brasil que estamos vivendo.

A “aventura” de Dom e Bruno era justamente isso: eles estavam junto a povos indígenas tentando documentar a degradação e invasão de terras indígenas por invasores, muitos ligados ao crime organizado. Na denúncia de tais situações, a presença de jornalistas e organizações não governamentais no local do conflito é essencial e sua atuação precisa ser assegurada.

Porém quem estava protegendo ambos eram os indígenas, assim como foram eles que deram o alarme do desaparecimento e procuraram pelos dois desde o primeiro momento, enquanto os órgãos do governo brasileiro relutavam e arrastavam os pés. Não gratuitamente, a coletiva da PF sobre o caso não incluiu nenhum indígena, nem reconheceu o papel fundamental deles nas buscas.

Sem “aventureiros” o apagão da imprensa no país se aprofunda e se perpetua a violência, o bang bang das disputas locais, as ameaças à segurança dos mais fracos e a democracia em geral. O uso da polarização “esquerda – direita” também impede o debate saudável de ideias e serve de escudo de quem não quer discutir o mérito das bandeiras que defende.

O resultado de tudo isso é um empobrecimento do processo democrático, uma incapacidade de diálogo que está transformando governos e casas legislativas em ringues de acusações rasas e debates irrelevantes enquanto problemas reais são deixados de lado.

Do lado da imprensa, o efeito de mais esse crime é devastador. Exaustos do trabalho absurdamente sofrido de cobrir uma pandemia num país em que a anti-ciência ocupou não só o grupo da família no whatsapp, mas o microfone dos principais púlpitos do país, jornalistas do país inteiro vivem a possibilidade da morte de Dom e Bruno como a perda dos últimos fios de segurança que imaginávamos ter.

Caberá a cada um de nós tentar evitar que isso prejudique ainda mais o trabalho de campo da reportagem. Mais uma vez vamos respirar fundo e tentar encontrar forças para seguir em frente. Eu, como muitos jornalistas do país, não conheci pessoalmente nem Dom nem Bruno, mas conheço bem o que os movia. Eram nossos irmãos de trabalho, de luta. Que suas famílias encontrem conforto em tudo que eles representavam de bom para o Brasil e o mundo.

E que nós, jornalistas brasileiros, possamos transformar nossa dor em determinação para seguir trabalhando em direção a um futuro melhor, mais justo e mais civilizado.

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1 comentário em “Morte de Dom e Bruno deixa imprensa de luto e em alerta”

  1. A cereja do bolo dessa sua matéria é a previsível mas horrorosa deportação de Assange para os EUA. É tristeza sobre tristeza.

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