Dia 30 de outubro, nem medo e nem esperança: reinvenção

No desamparo que esses quatro anos deixou o país, há um espaço de recriação e de aprendizado profundos.

Até aqui, na história da Nação, nenhuma eleição representou tanto a decisão entre continuar no rumo do fortalecimento do Estado de Direito ou aceitar uma formatação de cunho autoritário e sem limites muito precisos entre o que será legal ou simples manifestação da vontade do “líder”.

E olha que eleição nunca foi uma coisa muito pacífica nesse país: em 1930, Júlio Prestes ganhou mas não levou, atropelado pela revolução dos tenentes; em 1955, Juscelino ganhou mas quase ficou a ver navios, não fosse a intervenção do ministro do Exército, Teixeira Lott, em defesa da Constituição; em 1961, o vice do desastrado Jânio quadros, João Goulart, só assumiu porque o Congresso tirou da cartola o casuísmo do parlamentarismo para acalmar o ministro do Exército, Odílio Denys, desta vez contra a Constituição.

Depois vieram os 21 anos de regime militar, sem eleições de verdade. Com a volta da Democracia, o respeito ao resultado das urnas parecia ser tema pacificado, até a segunda eleição de Dilma Rousseff, contestada pelo derrotado, Aécio Neves, abrindo a caverna dos orcs golpistas. Em 2018, apesar de vitorioso, o ex-capitão Jair Bolsonaro acusou as urnas eletrônicas de não ter lhe dado a vitória em primeiro turno. Nesses últimos 4 anos, a acusação sem provas tornou-se o mantra/manto/regra três para uma possível contestação em caso de derrota no próximo domingo. E esse é o pé onde nos encontramos.

O mandato de Jair Bolsonaro foi marcado pelo exercício regular da desacreditação das instituições e personalidades democráticas: urnas, imprensa, universidades, institutos de pesquisa, instituições científicas, organizações não governamentais, intelectuais e artistas, Supremo Tribunal Federal, partidos políticos, leis protetivas das minorias e do meio ambiente, indígenas, negros, mulheres, doentes, pobres, entre tantas outras manifestações bizarras e paradoxais, como dar continência para a bandeira dos EUA, por exemplo. Como se isso importasse, diga-se de passagem. Importante mesmo foram os ensaios de golpe ao longo do mandato, a manipulação dos símbolos nacionais, o uso político da festa cívica do 7 de setembro, as ameaças veladas ou descaradas ao poder Judiciário toda vez que conseguia tolher um avanço inconstitucional do governo ou de seus aliados mais afoitos.

Tudo isso não foi capaz de impedir a formação de uma legião de seguidores, destampando um Brasil que não imaginávamos ou não queríamos imaginar existir, logo nós, um povo tão cordato e amante da paz. Mas a legião estava lá, o tempo todo, infeliz e ressentida com os avanços da Democracia, das conquistas sociais, das pessoas pobres e pretas visibilizando-se, alcançando um status de cidadania que se considerava “direito” de alguns poucos.

Quem não ouviu a “reclamação” de que os aeroportos tinham se transformados em rodoviárias? Quem não testemunhou um ressentido com a “pose” dos pobres e pretos que acham que agora “viraram gente”? Fui testemunha – e não somente uma vez – desses casos. A primeira década do século XX é uma amarga lembrança na memória de parte expressiva da população, acostumada a ver a outra parte “em seu lugar”. Outros discursos que avançaram nesses anos democráticos, como o da exigência por respeito às minorias despertou a sanha da “maioria” que não admite ter de respeitar, o que ela confunde com ter de obedecer. Esse incômodo em ter de adequar o vocabulário, de evitar as piadas sexistas, racistas e homofóbicas, soou como uma terrível intervenção em sua “liberdade”, em seu direito de continuar e reafirmar a condição de “maioria”, porque “sempre foi assim”.

Faltava uma voz que catalisasse esse sentimento que se traduz na vontade de reprimir, esmagar essas iniciativas que “subvertem” a ordem, a tradição, os valores aos quais essas pessoas estão acostumadas, pois que nunca se importaram com a vida dos outros exceto a de seus próximos, desde que os próximos fossem também seus iguais. “Prefiro um filho atropelado do que bicha”. Essa frase eu também testemunhei. “Bandido bom ( leia-se: preto e pobre) é bandido morto”. Essa, todos ou quase todos já ouviram.

Pois bem, a voz apareceu na figura do ex-capitão e deputado do baixo clero Jair Bolsonaro. Em um plano urdido depois da confusão liderada por Aécio Neves em torno da eleição de Dilma Rousseff, Bolsonaro viu a oportunidade de preencher o vácuo criado pela crise institucional provocada pelos candidato do PSDB. Era preciso reunir os órfãos da Ditadura, os insatisfeitos com a “onda” de direitos para as minorias, os que se consideravam desprestigiados com a ascensão social daquelas “pessoas desqualificadas”, os que não aceitavam o espírito público e laico que buscava ser consolidado no país, defendendo a ampla representatividade de todas as cores e ideias e crenças e sonhos dos brasileiros, os que não aceitavam ter de dividir suas experiências “exclusivas” de viagens e bens materiais com a empregada doméstica.

Como no filme “Que horas ela volta”, de 2015, aquela nova geração criada e crescida na Democracia era um ultraje para os velhos acomodados com os seus privilégios e com os direitos negados aos outros. Algo precisava ser feito, alguém precisava “por ordem na casa”.

A crise econômica fruto dos efeitos da recessão mundial e dos erros da gestão econômica da presidente Dilma foi a senha para a “rebelião”. Embalados pela perda do poder aquisitivo e por aqueles direitos adquiridos pelos pobres, aproximando os pobres ainda mais da classe média, impedindo a diferença sagrada que sempre manteve a “paz social” desejada pelos apaniguados, aquela na qual “cada um sabe o seu lugar”, diante disso, um furor fez-se ouvir contra o governo. “O gigante acordou”.

Era preciso realinhar o país com seu projeto de passado. Dilma cai, afastada pela ficção das “pedaladas”, perplexa por não ter percebido esse movimento tectônico dos orcs, e o vice Temer faz o papel de solução aquosa necessária para o trânsito da candidatura de Jair, apregoando a defesa dos “valores perdidos” pelos governos de “esquerda” no país. Enfim, a Democracia perdia sua definição de “para todos” e ganhava sua velha/nova caracterização, de “contra nós”.

Quatro anos depois, testemunhamos a terra arrasada que sobrou do impulso democrático iniciado com a marcha pela anistia, pelo movimento das diretas, pela constituinte de 87-88, pela Constituição cidadã, pelos programas sociais, universidades, políticas de redistribuição de renda, respeito pelos direitos dos indígenas e quilombolas, mulheres e pessoas com deficiência. E despertamos, mais uma vez, para o esforço de restauração ou queda no abismo. Não se trata do Lula ou do PT, mas da Nação e da Democracia. Não se trata, como bem diz um meme de internet, de imaginar que recuperaremos o paraíso, mas de sair do inferno onde nos encontramos. Não se trata da esperança ingênua, mas do medo real, concreto.

No desamparo que esses quatro anos deixou o país, há um espaço de recriação e de aprendizado profundos. Aproveitemos essa oportunidade única. Marquemos as portas/urnas com o xis/voto dos que acreditam em um país para todos, capaz de gerar e distribuir riquezas, oportunidades, projetos de vida e de futuro. E que Sauron seja derrotado.

Oxalá.

Sobre o/a autor/a

2 comentários em “Dia 30 de outubro, nem medo e nem esperança: reinvenção”

  1. Entendo que moramos em paises diferentes. No meu pais tem um governo buscando prosperidade para todos. Democrático. Procurando digitalizar e retirar burocracia. Deixar o estado eficiente. Enfrentou desafios extremos e conseguiu segurar a economia e muitos empregos. Promoveu investimentos privados para os proximos 30 anos em infraestrutura. Que pais é este?

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