“Defendamos as fadas!” – O fenômeno da dissociação cognitiva

A interação em círculos “virtuais” abre a possibilidade de a pessoa viver num mundo paralelo, irreal, como se real fosse

“As fadas têm um papel importantíssimo. Elas sempre estiveram presentes em grande número nas matas e florestas, auxiliando no equilíbrio do planeta. Com suas ações invisíveis, elas garantem, entre outras coisas, a polinização das flores, o crescimento das plantas, o fluxo da água e a corrente de energia que mantém o fluxo vital da Terra. Entretanto, por conta da ação humana, estão desaparecendo perigosamente, o que fatalmente levará a uma catástrofe sem precedentes no universo!”

Que tal esse texto? Fui eu mesmo quem o criou. Imaginemos, entretanto, que alguém efetivamente acreditasse no que ele diz. A princípio, seria uma crença inócua,que a pessoa poderia carregar a vida inteira sem ser percebida e sem que isso a incomodasse. Se tal “crente”, entretanto, começasse a “ver” fadas, interagir com elas e preocupar-se com sua possível extinção a ponto de isso atrapalhar a sua vida cotidiana, poderia ser diagnosticada com algum distúrbio mental (por exemplo, esquizofrenia) que um profissional de saúde mental seria capaz de tratar, com possibilidade de controle da doença ao ponto em que isso não afetaria o dia a dia do paciente.

Pensemos agora em algo bem mais complexo: que a pessoa que acredita em fadas (vamos chamá-la de “fadista”) encontrasse virtualmente um grupo de gente igual ela. Por exemplo, um grupo fechado numa rede social (hipoteticamente, no Facebook ou no WhatsApp). Esse grupo virtual poderia exercer um papel de reforço a seu distúrbio mental. Antes das redes sociais, o “fadista” talvez nunca externasse sua crença e provavelmente jamais encontrasse outros com os mesmos sintomas. As novas tecnologias da comunicação, entretanto, possibilitam esse encontro.

Nesses grupos virtuais, haveria farta divulgação de material sobre a importância das fadas e o tremendo risco que a humanidade correria com sua eventual extinção, relatos de “evidências” sobre as ações das fadas, depoimentos emocionados de pessoas que tiveram experiências pessoais com fadas, que as viram e entraram em contato com elas, supostas mensagens enviadas por fadas etc. etc.

A interação em círculos “virtuais” abre a possibilidade de a pessoa viver num mundo paralelo, irreal, como se real fosse. Um mundo criado por convicções ou fantasias sem conexão com a realidade, mas autoalimentado pela ilusão coletiva. Suponhamos que nesse grupo haja pessoas “conhecidas”, “famosas”, “celebridades”, com as quais o fadista poderia interagir, quem sabe até individualmente! É fácil conjeturar qual seria o efeito de sustentação do distúrbio mental que isso poderia provocar.

Indo mais adiante, conjeturemos que a disseminação dessa crença fantasiosa/doentia fosse capaz de dar dinheiro e/ou poder a um outro grupo, o dos “fadólogos”, os estudiosos das fadas. E que alguns fadólogos, cientes do poder das redes sociais, investissem para, com o conhecimento de especialistas em novas tecnologias de comunicação, difundir a crença o máximo possível, de modo a gerar e sustentar grandes grupos de “crentes” no fadismo.

No nosso hipotético exemplo, o fadista que passasse a buscar sustentação de sua crença em opiniões, notícias, depoimentos, relatos etc. de seus iguais, desprezando qualquer argumento ou prova da falsidade do material fadista, estaria sofrendo do que se chama de “dissonância cognitiva”. Passaria a alimentar sua ilusão com o material falso que a “comprova”.

As redes sociais trouxeram a possibilidade de encontro e autossustentação de pessoas nesse estado, criando a dissonância cognitiva coletiva: grupos maiores ou menores de pessoas vivendo uma realidade paralela, autossustentando seu engano em detrimento de toda e qualquer evidência contrária a ele.

Levando nosso exemplo hipotético à exacerbação, podemos pensar numa grande mobilização dos fadistas para a ação concreta no mundo real. Os grupos fadistas se articulariam para promover manifestações públicas de apoio às fadas, fariam campanha aberta contra os “antifadistas”, poderiam juntar grandes contingentes de fadistas para protestar diante das sedes de entidades científicas solicitando o urgente reconhecimento da existência das fadas e do risco iminente de sua extinção. Um verdadeiro delírio coletivo.

De passagem: pessoas que sofrem de dissonância cognitiva geralmente são patologicamente inseguras e precisam de estruturas rígidas, com grande estabilidade de seu entorno. São pessoas pouco flexíveis e adaptáveis e para as quais qualquer ameaça de mudança parece algo trágico.

O mais intrigante é que, por se tratar de um distúrbio mental (ainda que não permanente), não é possível afastá-lo apenas com conversa racional, debate lógico, demonstrações irrefutáveis. Uma pessoa com doença mental que ouve vozes na cabeça, por exemplo, não deixará de ouvi-las porque alguém a convenceu lógica e racionalmente de que isso não existe. No caso da dissonância cognitiva coletiva, os sintomas poderão diminuir e passar a partir de um choque de realidade. Na medida em que – no imaginário exemplo do fadismo – o tempo fosse passando sem que nenhuma entidade científica reconhecesse a existência das fadas, sem que a “tragédia universal da extinção das fadas” ocorresse, ou a existência ou inexistência das fadas tivesse qualquer consequência concreta, o paciente poderia ir paulatinamente internalizando o fato de que sua ilusão é insustentável e assim abandoná-la.

No fictício caso das fadas, elas são seres benignos, e os “fadistas” crerão firmemente estar fazendo grande bem à humanidade com suas ações de proteção às fadas. Se seus objetivos não fossem atingidos e eles sofressem o choque de realidade, nas circunstâncias de hoje, as redes sociais ainda poderiam dar infinito suporte às suas crenças.Logo surgiria, por exemplo, a tese de que tudo é uma conspiração dos ogros, inimigos históricos das fadas, que estão ao pouco dominando secretamente o planeta para eliminar as fadas. Daí a insensibilidade das entidades científicas e o silêncio ou a cumplicidade da grande mídia e dos governos, dominados por ogros infiltrados etc. etc. Infinitamente…

E se esse choque de realidade não for suficiente para acabar com as ilusões da dissonância cognitiva, pela interminável sustentação das redes sociais a ela? Bem, nesse panorama fictício de hipóteses, a humanidade ainda não experimentou isso. As ilusões coletivas doentias sempre passaram. Talvez seja diferente num mundo em que as novas tecnologias da comunicação trazem perspectivas ainda nunca vistas. Por enquanto, é impossível saber – provavelmente, logo teremos a resposta.

Sobre o/a autor/a

2 comentários em ““Defendamos as fadas!” – O fenômeno da dissociação cognitiva”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima