Contar a vida da avó para resgatar a história do Holocausto

"Entre as sombras e os sóis: a história de Sala Borowiak" é o novo livro de Carlos Reiss, diretor do Museu do Holocausto

Quando um pesquisador se comove durante o trabalho de leitura e escrita, será que ainda pode continuar ou precisa permanecer em silêncio entregue à emoção? Será que ele pode dizer que se encontrou no livro como amigo e autor, afinal, desde que ele tem suas primeiras memórias de infância, essas lembranças estão entremeadas à vida comunitária judaica de Belo Horizonte e atreladas à família do autor Carlos Reiss? Será que ele pode revelar que reconheceu a maioria dos “personagens”, que algumas de suas memórias eram falsas e remodeladas – como é o engendramento da memória e do tempo –, que depois de mais de quarenta anos entendeu alguns eventos os quais passou ao lado dos amigos de infância Michel e Carlos Reiss – e que até se sente culpado por não ter sido mais cúmplice, levando em conta o peso do trauma geracional revelado nas entrelinhas desse livro? Será que o pesquisador-resenhista deve se entregar e então caminhar junto, de mãos-dados e com um aperto no coração rumo a um passado de sombras, sóis e reminiscências perdidas?

Sinto que sim. Sigo.

“Entre as sombras e os sóis: a história de Sala Borowiak” é documento histórico, é reconstrução minuciosa de vidas e desaparecimentos, é testemunho e resgate de uma – de vários – sobreviventes. É um livro necessário, sobretudo para este resenhista-leitor, que também é um escritor obstinado em busca de memórias e histórias, mas que, por ser romancista, nunca empreendeu um projeto tão detalhista quanto o de Carlos Reiss. O pesquisador-escritor sempre procurou entender a História através dos livros; já o autor do livro precisou compreender a História por meio da sua inescapável herança.

Porém, ambos se complementam e dialogam.

“Entre as sombras e os sóis: a história de Sala Borowiak” é o projeto de vida de Carlos Reiss. Antes dele, o diretor do prestigioso Museu do Holocausto de Curitiba já tinha escrito “Luz sobre o caos: Educação e memória do Holocausto” no qual busca compreender os genocídios e educar para que nunca mais se repitam. Nessas outras letras publicadas em 2019, acredito que Carlos ainda não era capaz de se colocar e duelar com a própria história; de se deparar consigo mesmo, novamente menino-criança, cercado-cerceado por quatro avós sobreviventes, por dois tios que carregavam o peso impensável e impossível das lembranças, por um pai e uma mãe atados em silêncios e traumas. “Mas fato é que precisei, por muitas vezes, inclusive (tentar) afastar-me da condição particular de neto de quatro sobreviventes para tomar decisões curatoriais e pragmáticas, bem como construir uma filosofia educativa ampla, plural, justa e contemporânea do Holocausto. (…) A tarefa de contar a jornada de minha avó Sara e de traçar nossas raízes familiares não foi das mais fáceis, pelo contrário. O trabalho de imortalizá-la por meio da escrita englobaria uma imersão consciente em capítulos obscuros não apenas dela e de seus parentes, mas da história do povo judeu – que já não vive, em grande parte, nos locais onde viviam nossos recentes antepassados, há cem ou duzentos anos”. Com a escrita e publicação desse belo livro-documento histórico, Carlos expõe, ainda que nas entrelinhas, sua alma, sua carne, seu sangue e suas pesquisas.

Foram décadas para que Carlos conseguisse desvendar alguns mistérios da história de sua família e escrevesse esse livro. Nas palavras do também sobrevivente Aharon Appelfeld, em seu belo livro Meu pai, minha mãe: “No instante em que os olhos da criança se erguem por sobre a escuridão dos anos, surge algo como a promessa de novas visões. Palavras claras e um refinamento luminoso da linguagem, que havia anos se encontravam ocultos em seu interior, revelam-se. O espanto exaltado da criança remove, num instante, a poeira que os anos acumularam sobre as imagens e sobre as pessoas, e elas surgem à sua frente como quando lhe foram reveladas pela primeira vez e então, com todo o seu coração, você deseja que essa graça não acabe nunca”.

Carlos é justamente essa criança – e eu me lembro muito bem dele e de seu irmão – que resolveu-permitiu revelar essas claras palavras que há anos se encontravam ocultas em seu interior. Ele e seu personagem-irmão, meu amigo Michel, nesse espanto exaltado que é a escrita de um livro-testemunho, removem a poeira – e o trauma – que os anos acumularam sobre as imagens e sobre as pessoas – pessoas com quem convivi, dialoguei, discuti, mas que nunca compreendi. Sim, essas pessoas ressurgem à nossa frente como se fossem reveladas pela primeira vez (a Dona Sara e o Seu Natan, que fizeram parte da minha infância, aqui são retratados e expostos como nunca os conheci), assim como o autor as remodelou e as resgatou.

“Entre as sombras e os sóis: a história de Sala Borowiak” é um testemunho de primeira ordem (o de Sara), a reconstrução do trauma da geração dos filhos dos sobreviventes (Natan, Joel e Aloísio), um relato jornalístico, autobiográfico, histórico e testemunho terciário do neto apaixonado (Carlos), tanto pela avó, quanto pelo resgate memorialístico dos pereceram durante esse genocídio da Segunda Guerra.

Carlos compartilha com Appelfeld a dura tarefa da escrita e das espinhosas reminiscências. Para o escritor romeno: “Escrever um livro é uma jornada que se estende por muitos dias. Ao longo dela, como em todas as jornadas, haverá dúvidas, equívocos, pensamentos desesperados, sono intranquilo. O contato com a própria intimidade e com as figuras que o acompanham ao longo dos caminhos percorridos é uma mistura entre pessoas que você conheceu de perto e outras que passaram à sua frente e que desapareceram de sua vida”. Carlos cumpre essa tarefa de Appelfeld e complementa o projeto de perpetuar a vida sobre os escombres: “Essas palavras dão início a uma nova vida, pois passamos a conhecer um pouco da história de nossa ascendência. Quem foram. Enfim, quem somos. A premissa e o objetivo dos nazistas, Louvado seja Deus, não foram atingidos. A aniquilação total dos judeus não foi atingida”.

Carlos resgata o testemunho e a história de Sara e da Shoá – mas aqui o paradoxo de Primo Levi se faz presente: o sobrevivente-escritor-químico italiano se debruçou no duplo paradoxo da testemunha: a impossibilidade de expressar por meio de palavras um evento-limite, e o paradoxo da condição do sobrevivente, que testemunha, por aproximação, a experiência radical daqueles que não sobreviveram. A simultânea impossibilidade e necessidade de testemunhar habita a cisão entre o que é possível dizer e o que de fato se diz de forma falha e incompleta. Carlos, historiador e jornalista, analisa essas cisões ao citar, comentar e perscrutar pelo documento que corrobore – ou mostre os fragmentos e falhas – presentes no testemunho de Sara (e de todos). “Tenho dúvidas também a respeito do tempo exato em que Sara ficou presa em Auschwitz. Seu testemunho diz explicitamente “seis semanas”. Porém, os registros de sua entrada no campo nazista de Bergen-Belsen mostram o mês de setembro de 1944. Significa que, tendo sido Sara deportada de Lodz em 28 ou 29 de agosto (como descrito no capítulo anterior) e chegado a Bergen-Belsen no máximo em 30 de setembro, seu período em Auschwitz-Birkenau não ultrapassou quatro semanas. Caso fossem seis semanas, teria chegado a Alemanha já no início de outubro, e não em setembro. Mais uma pecinha do quebra-cabeças que se perdeu na história.”

Em “Os afogados e os sobreviventes”, Levi escreve: “Repito, não somos nós, os sobreviventes, as autênticas testemunhas. Esta é uma noção incômoda, da qual tomei consciência pouco a pouco, lendo as memórias dos outros, relendo as minhas, muitos anos depois. Nós, sobreviventes, somos uma minoria anômala, além de exígua: somos aqueles que, por prevaricação, habilidade ou sorte, não tocamos o fundo. Quem o fez, quem fitou a górgona, não voltou para contar, ou voltou mudo: mas são eles, os ‘muçulmanos’, os que submergiram – são eles as testemunhas integrais, cujo depoimento teria significado geral”.

Se o testemunho primário de Sara é parte dessa “minoria anômala” nomeada por Levi, o que Carlos traz (mesmo nas entrelinhas) de seu pai Natan, e de seus tios Aloísio e Joel (os sóis de Sara) é fundamental: os silêncios traumáticos geracionais. Se filhos e netos se emudeceram – somatizando e adoecendo por imposição do trauma – Carlos rompe, fura e enfrenta o silêncio para que a geração de seus filhos não carregue mais essas marcas de dor. E também para que este pesquisador-amigo sonhe, de mãos-dadas com a família Reiss, que genocídios, diásporas e perseguições nunca mais se repitam.

Serviço

Entre as sombras e os sóis: a história de Sala Borowiak
Autor: Carlos Reiss
Editora: Folhas da Relva, 2022
Por Jacques Fux

Sobre o/a autor/a

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