A mesquinharia não pode ser maior que a humanidade

Às vezes, só o que está entre dar ao outro uma chance de se sentir em paz é a nossa mesquinharia

Draúzio Varella abraçou uma mulher trans. Todo mundo se emocionou. Confesso que a reportagem inteira me emocionou muito, desde a chamada dos apresentadores do Fantástico, que descreveram as personagens como quem “nasceu num corpo masculino, mas são mulheres”.

Esta semana assisti meu pai morrer. Há nove meses ele lutava com um câncer de bexiga. Lúcido, decidiu que não queria sofrer, pediu a suspensão dos tratamentos e que fossem tomadas medidas para reduzir a dor.

Vi ele consciente até que o limite, quando a equipe médica e a família passaram a atuar para garantir o conforto dele. Passei horas segurando sua mão e esperando o sofrimento ser aliviado.

É a segunda vez que vejo alguém próximo nos deixar. A morte, vi, não é pontual. Ela vai se aproximando. Um fato da vida, um processo que não podemos parar. A partir de um determinado momento, há pouco o que se fazer. Só estar presente.

Foi nesse espírito que assisti o Dr. Draúzio conversando com mulheres trans na cadeia. Vi a Lola dizer que iria esperar o pai e a mãe morrerem para ser livre. Triste a história da Lola. Mais triste a desse pai e dessa mãe cujas mortes libertarão o filho

Como toda filha, tive bons e maus momentos com meu pai. Pais erram, aprendi nesses sete anos em que sou mãe. Mas não posso dizer que meu pai alguma vez me impediu de ser alguma coisa. Professor, matemático, o pai não foi rico, mas me deu acesso a uma fortuna na forma de livros, de oportunidades de experimentar, de ciência.

Lembro de ter explodido uma lâmpada que soldei em um fio e liguei na tomada. De ter desmontado o liquidificador da minha mãe pra ver como funcionava. De ter levado um telégrafo que montamos juntos na feira de ciências.

Mas acho que o legado mais forte é que tanto na vida quanto na morte, meu pai me ensinou a não ser mesquinha (muito embora essa seja uma luta diária, porque a mesquinharia está sempre à espreita). Ele sempre estava com as portas da oficina dele abertas para quem quisesse cortar um pedaço de madeira ou montar uma CNC.

Acho que essa ausência de mesquinharia é que fazia dele um professor tão bom, tão querido pelos alunos. Eu tentei, mas não consegui seguir o mesmo caminho.

Mas sei o seguinte (e me lembrei disso também assistindo o Dr. Draúzio): quando puder fazer algo por alguém que a ajude a se sentir feliz, faça.

Sei da ciência que explica a transexualidade. Sou uma mulher da ciência. Mas entendo que há quem seja da fé, da religião.

No entanto, nenhuma das convicções apaga o seguinte: seja a transexualidade uma condição da humanidade ou um pecado, ela em nada afeta os demais. Há quem considere a Lola e a Suzy pecadoras. Mas o quão mesquinhos temos que ser para nos negarmos a chamá-las pelo nome que a faz felizes?

Quando, no pior dia, meu pai sentiu dor enquanto a equipe médica tentava aliviar seu sofrimento, só o que pude fazer foi segurar sua mão. Daria o mundo para que houvesse uma palavra que tirasse a dor dele. Não tinha.

Mas há inúmeras ocasiões em que sim, temos essa palavra, esse respeito. Só o que está entre dar ao outro uma chance de se sentir em paz é a nossa mesquinharia. E ela não pode nunca ser maior que a nossa humanidade.

Obs: Pai, vá em paz. Nós te amamos e vamos levar os teus ensinamentos em frente.

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