O livro digital e o fantasma da escravidão

Enquanto a Suécia freia seu programa de livros digitais por ver que não estava dando certo, São Paulo vai na contramão

Duas notícias mexeram recentemente com o mundo da escola: o governo conservador da Suécia decidiu frear o seu plano de digitalização dos livros didáticos por entender que eles não trazem benefícios para os alunos. Pelo contrário, os dados indicam que há uma queda na compreensão da leitura, além de uma diminuição preocupante com a atividade escrita. Em uma pesquisa recente com 2.000 professores, um em cada cinco disse que seus alunos nunca ou quase nunca escreveram à mão. Isso porque a Suécia caiu de 555 para 544 pontos no relatório que afere a compreensão de leitura entre os jovens estudantes. A média europeia é de 528 pontos. O pior número é o da Catalunha, com 507. Apesar dos números suecos continuarem altos, a ministra da Educação apoia a medida de reintroduzir um livro por disciplina, sob pena de, no futuro próximo, “criarmos uma geração de analfabetos funcionais”.

Já o governo conservador de São Paulo anunciou a substituição dos livros físicos por material digital, a partir do ano de 2024. Isso em um país que há mais de 80 anos possui um dos mais eficientes programas de distribuição de livros didáticos do mundo, garantindo acesso a materiais de qualidade – aprovados por comissões de especialistas das melhores universidades do país – e também à pluralidade de abordagens e métodos, permitindo que os professores escolham os materiais que melhor se coadunem com seu trabalho, dentro de uma perspectiva elementar que é a da preservação da autonomia do professor dentro dos limites possíveis em uma rede de ensino pública e democrática.
Os índices de analfabetismo funcional no Brasil são alarmantes: segundo o INEP, um em cada dez estudantes com mais de quinze anos não entende o que lê. Entre os 25% mais pobres, esse número mais do que dobra. No meio rural, quase triplica.

Em São Paulo, 15% dos domicílios não tem acesso à internet. E os que têm, a maioria não possui internet de velocidade compatível com as exigências necessárias que a carga de estudo diária requer. Durante a pandemia, esse problema foi mais do escancarado, sem que medidas efetivas para a sua solução ainda tenham sido implementadas.

O curioso nessa guinada cibernética do Estado de São Paulo é que em fevereiro desse ano, a mesma secretaria de Educação proibiu o uso das redes sociais e streamings  nas quase 5500 escolas estaduais. “Para evitar dispersão do que interessa”, afirmou o secretário, sem levar em consideração que o uso adequado dos múltiplos conteúdos disponíveis na internet podem favorecer uma formação crítica, por permitir acessar várias fontes de informação e variadas análises sobre os fatos, coisa que um material único jamais permitirá. Ou seja: parece que o problema verificado pelo governo de São Paulo é com a pluralidade e não com uma suposta coadunação com a contemporaneidade. Pelo contrário, a censura de livros e seus conteúdos é uma das marcas do medievo, quando não éramos nem mesmo modernos. O que, por aqui, parece que muitos não fazem questão de ser.

O que é ainda mais curioso é que essas medidas, somadas ao esdrúxulo arranjo chamado escola cívico-militar, nunca parecem ser um bom arranjo para as escolas privadas, que continuam oferecendo para seus alunos um ambiente rico de possibilidades de pesquisa, abordagens, materiais, discussão, sem uniformes militares nem policiais andando pelos corredores das sua escolas. Pau que vale pra Chico nem pensar em encostar em Francisco, devem pensar os governadores e seus secretários, cujos filhos dificilmente se submeteriam às regras por eles impostas aos pobres.

O que podemos concluir das duas notícias recentes que comento nesse texto, é que há conservadores e conservadores. A diferença entre a Suécia e o Brasil, como diria o psicanalista Contardo Calligaris, é que por aqui todas as ações são assinadas pelo fantasma da escravidão. Enquanto não formos capazes de nos reconhecer como uma sociedade de cidadãos, a máxima “não faça aos outros o que não queira que façam a você” será cindida por uma linha clara: há os outros que não são os nossos e há os outros que são como nós. Aos nossos, tudo que a melhor e mais atenta pedagogia mundial oferece. Aos outros, polícia na escola e analfabetismo funcional. E livros únicos. Digitais.

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