Café com meus pais

Aos poucos entendo esse reencontro de meus pais com a história, agora companheira das horas extras que a vida guardou para eles

Hoje levantei bem de manhãzinha e fui tomar café com meus pais. Havia um nevoeiro muito forte e saí de casa com uma sensação de noite. Meus pais acordam sempre muito cedo e fazem sempre os mesmos gestos: ele faz o café, ela arruma a pequena mesa bamboleante da cozinha – que meu pai chama de “bailarina” e não supõe a hipótese de arrumá-la ou substituí-la – ele bebe café com leite, ela chá; ele come bolacha com geleia, ela um pão torrado com manteiga. Depois ele espreme um copo de suco de laranja para ela e ele toma um copo de água. Por fim, ambos comem um fatia de mamão, tomam os remédios, e a refeição termina. Não adianta nada eu levar queijo, como, aliás, fiz hoje, (nem sei por qual razão), nem presunto, nem pão fresco, croissant, bolo ou qualquer outro tipo de guloseima própria do desjejum. Minha presença já é a maior quebra de rotina a qual eles se impõem sem reclamar, desde que eu não fique tempo demais.

Quando eu chego, meu pai me serve café preto – que ele faz muito bem – com açúcar demerara ou mascavo, porque minha mãe antecipou os cientistas em décadas e já sabia que os adoçantes são cancerígenos, e algumas das bolachas que ele está comendo. Na verdade, ele oferece tudo o que há na geladeira – iogurte, requeijão, guaraná – mas eu vou recusando educadamente até que ele sinta que cumpriu sua obrigação como anfitrião e tome seu café com calma. Ficamos espremidos na pequena cozinha, segurando a mesa e tomando o café, ele fazendo algum comentário sobre a semana, sobre quais médicos visitou ou que vai visitar, os remédios que está tomando, minha mãe falando de sua visão já quase sumida, do corpo cansado, tudo entremeado com perguntas sobre a minha saúde, meu trabalho, a família. As frases vão e vêm, cruzando a mesa como um movimento de bispo no tabuleiro. Rapidamente essa fase passa e então eles começam a fazer o que mais gostam: lembrar. Hoje falaram longamente sobre como se conheceram, há mais de sessenta anos, um corrigindo o outro em um detalhe ou outro mas, no geral, tecendo comentários tão minuciosos, pormenorizados, como se estivessem falando de um fato de uma semana atrás. E desfilam nomes de mortos, desconhecidos para mim, mas que, depois de tantas repetições, já me são familiares, amigos, amigas, parentes que só conheço por meio da lembrança deles. Também falam sobre a casa de madeira onde nasci e da vida difícil que eles tiveram, mas que foi, mesmo assim, um grande salto de qualidade para minha mãe, que era muito pobre quando casou com meu pai. Ouço e sinto o quanto esse tempo é o refúgio preferido deles, embora o presente não seja ruim, muito pelo contrário. Mas o presente para ela, com 85 anos e quase cega, para ele, com 83 e uma vida de aposentado sedentário desde os 48, não apresenta mais grandes atrações ou surpresas. O passado, porém, é ainda cheio de emoções e peripécias. O passado guardado na memória é a poupança que eles fizeram e que agora usufruem, visitando muitas vezes, tirando, a cada vez, um pequeno naco para degustar lentamente, os olhos recuperando brevemente o brilho daqueles tempos.

Fico com eles por umas duas horas e depois volto para tomar café com a minha família, que acorda tarde nos domingos, deixado o sono roubar um pouco do tempo de não fazer nada. Sigo então minha própria rotina, ainda uma cartografia de poucas planícies e muitas subidas e descidas, algumas abruptas, algumas longas e cansativas. Aos poucos vou entendendo a lógica da velhice de meus pais, esse lento e lânguido despedir-se do futuro sem mais expectativas e esse reencontrar-se com a história que construíram e que agora serve como amiga, companheira, para as horas extras que a vida guardou, generosamente, para eles.

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