A Paixão

Gosto de perguntar a meus alunos por que a sexta feira santa é chamada de a Paixão de Cristo.

Quando pergunto qual é o contrário da ação, meus alunos e alunas dizem, convictos, que é a reação. A reação, no entanto, é a resposta da ação e não o seu contrário, explico só para deixá-los confusos. Afinal, Física parece ser, para eles, uma disciplina bem mais “séria” do que Filosofia. E então acrescento: o contrário da Ação é a Paixão. Pronto, está instalado o caos.

Tento exemplificar usando a autoridade de outras disciplinas “sérias”. Lembram do agente passivo da língua portuguesa? Lembram do elemento ativo da química? E por aí vai. Recorro ao senso comum: o que acontece com quem está apaixonado? Ele deixa de agir. Está “caidinho” pelo outro. Como trabalho com jovens incluídos, cheios de capital cultural, mudo de língua e pergunto: como é “estar apaixonado” em inglês? Muitos abrem um sorriso de meia compreensão.

Continuo, apelando agora para o grosso da sala que busca uma vaga no curso de Medicina: vocês que serão médicos (sorrisos largos), como chamarão a pessoa que vai se internar na sua clínica ou mesmo procura-lo em seu consultório? Paciente, respondem em coro. Então? A paixão é o contrário da ação, porque enquanto nessa você é que afeta o outro, naquela você é o afetado, você é quem sofre a ação de alguém, você se entrega, fica ali, parado, caído. E arremato com a expressão pouquíssimo literária que aprendi na infância, no bairro pobre onde vivi: “estar apaixonado é ficar de quatro, com os pneus arriados por alguém”.

Aí vem a parte que eu mais gosto dessa história de falar sobre ação e paixão com eles. Só para contextualizar, a aula é sobre Espinosa e seu conceito de conatus: “cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar em seu ser”, diz o pensador na sua Ética. Para ele, como fazemos parte de uma cadeia de seres finitos que afetam outros seres e são afetados por eles, resistimos em nossa unidade até que uma causa maior nos desintegre.

“Um corpo vai sempre o mais longe que pode, tanto na paixão, quanto na ação; e aquilo que ele pode é seu direito”, diz Deleuze, dialogando com Espinosa. A ação é o movimento de expansão, de ampliação de nossa potência de sermos o que somos, nossa capacidade de existir. E por isso o bem viver, o cuidado de si, consiste em escolher entre os inúmeros seres que nos afetam, aqueles que mais ajudam na nossa permanência e na expansão de quem somos.

A parte que eu mais gosto é perguntar a eles por que a sexta feira santa é chamada de a Paixão de Cristo. Pergunto, herético: Jesus teria falled in love por alguém? O que significa essa expressão? Bom, a atitude de Jesus é a chave de sua doutrina: ser o cordeiro para imolação em nome dos outros. Entregar o próprio corpo para que ele seja afetado pela dor e pelo sofrimento em nome dos outros, garantindo assim a salvação desses. Aquilo que costumamos chamar de “sacrifício”. Sacrifício voluntário. Aí a sua grandeza: a entrega do corpo que busca mais do que tudo preservar-se, para consolar as decisões tristes dos outros. Este o sentido da atitude de Jesus. Cordeiro de D’us, que tirais os pecados do mundo…dá-nos a vossa paz.

Os alunos e alunas costumam ficar ensimesmados com essa história, meio sem entender e meio sem acreditar. A aula era de Filosofia e enveredou para a Religião? Não, esclareço. Falo de homens e de como definem suas experiências de vida em relação a si, em relação aos outros. Como cada um de nós, em cada momento. Aí a aula acaba e desejo uma boa semana para todos.

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima