A fantasia do anjo da guarda deve ter surgido de um amigo discreto

Hoje tenho quase sessenta anos. E toda vez que penso em meus amigos, sou de todas as idades

Quase tudo o que conquistei na vida devo diretamente aos meus amigos. O resto, devo indiretamente a eles. Faço um esforço para lembrar de qualquer coisa bacana, desde a minha infância, minha adolescência atormentada, minha  longa vida adulta, que teve de começar abruptamente aos dezoito anos, pagando aluguel e bancando comida e torcendo para não ter nenhuma outra despesa no mês, e sempre há um amigo lá, junto de mim, próximo a mim ou, mesmo distante, fazendo algo por mim. A fantasia do anjo da guarda deve ter surgido em torno de um desses amigos discretíssimos que a gente descobre muito tempo depois que nos indicou para aquele emprego ou para aquela bolsa de estudos ou simplesmente fez um elogio sobre você para a pessoa que depois teria um papel importante na sua vida. Sem dúvida, a amizade das pessoas por mim fizeram-me chegar até aqui.

No entanto, o motivo dessas amizades continua um mistério . Considero-me um péssimo amigo, tão ensimesmado que vivo e sou, esquecendo o tempo todo as datas, os encontros, as conversas que poderiam ter sido memoráveis, mas que simplesmente não existiram porque eu não apareci. Afastei-me de amigos de décadas pelo simples fato de que não faço a mínima ideia. E mesmo assim, quando, em um lance fortuito, cruzamo-nos em algum lugar, esse amigo me abraça com força e diz palavras carinhosas . Não sei por que isso acontece. Mas é um alívio que aconteça.

Acredito que deveria dedicar parte de meu tempo para escrever sobre meus amigos e para os meus amigos. Sobre o Coelho, que no primeiro ano do Colégio Militar me ajudou a estudar matemática e me fez entender algo sem o qual eu não teria prosseguido na escola e então sabe lá o que eu seria hoje; ou o meu amigo Edgar que me consolou e dissuadiu-me quando pensei em fugir de casa e da violência de meu pai e assim salvou-me de sabe lá o que, pois como um guri de treze anos iria sobreviver sem o arrimo dos pais naqueles tempos furiosos? Meu amigo Vicente, guia intelectual, que cobrava-me o estudo do dicionário e elogiava meus versos tortos, incentivando-me a inscreve-los nos concursos escolares até que tirei um primeiro lugar e conclui que acreditar em mim um dia podia dar alguma boa  coisa. Do amigo Fábio que emprestava-me livros em quilos e depois cobrava-me as histórias, sempre ouvindo com muita atenção, como se ele mesmo não soubesse o enredo. Devo a eles tanto que o limite das palavras que eles me ensinaram a amar e perseguir ainda não é capaz de dar conta e fazer jus a esse sentimento.

Quando um ano acaba tornamo-nos nostálgicos quase que por obrigação. É uma coisa compulsória do momento lembrar e fazer listas. Do que visitou, do que fez, do que ganhou, do que ampliou no projeto de sua vida. Eu fiz alguns novos amigos nesses últimos anos, o que considero admirável. Como são novos esse tempos digitais, estreito algumas dessas amizades sem nunca ter posto a pessoa diante de meus olhos e trago-a junto a mim, embora seja incapaz de reconhece-la na rua. Incomoda-me, é lógico, a falta do corpo e o calor da pele, mas, ao mesmo tempo, reforça a minha tese do amigo como uma transcendência, um olhar que me compõe no mundo, institui-me, dá-me o direito definitivo ao meu nome, dito pela boca deles. Existo porque eles existem. “Porque era ele, porque era eu.”

Cobro-me organizar encontros com esses meus queridos parceiros de nuvem, um daqueles cafés de horas, a caminhada sem rumo pelo centro velho, visitando os sebos heróicos com seus discos e livros e gravuras. Mas fico por aqui – isso parece não ter jeito – adiando esses encontros mas não o prazer de imagina-los em profusão.

Pouca coisa evidencia o fato de que não somos só quem julgamos ser, como indivíduos, do que a amizade. Um tanto de egoísmo e violência poderiam ser evitados se existisse um ensino de teoria sobre a amizade, desde cedo, nas escolas. Sempre penso nas escolas como o destino das minhas reflexões, e é inevitável para mim, porque as vilas, as praças, os campinhos, as festinhas de garagem, os encontros nos portões, a meninada sentada nas calçadas até a noite vir e a voz dos pais anunciar o fim da reunião, isso é hoje miragem da memória, mas a escola resiste e penso que ela não deva servir para antecipar o futuro insensível e melancólico dos adultos, mas investir no outro como aquele que diz pra nós quem somos e como podemos ser melhores do que somos. O outro com quem sabemos que podemos contar para expor nossa mesquinhez, nossa inveja e nossa ira, nossa ignorância e nossas esperanças mais vãs, sem o medo de julgamentos e execuções de  penas, mas a certeza de que , ao esvaziarmo-nos de nossas palavras, as palavras deles, dos amigos, irão preenchendo o lugar desse vazio e nunca seremos sós porque carregaremos esses ecos dentro de nós para sempre.

Hoje tenho quase sessenta anos. E toda vez que penso em meus amigos, sou de todas as idades. Trago uma espécie de eternidade dentro de mim, composta por suas palavras, gestos, apoios, silêncios, conselhos, broncas, abraços e beijos. Minha geografia é humana. As pessoas que eu amo são o meu lugar no mundo.

PS: Para Fernanda, Erasmo, Ale, Marjorie, Marcelo, Rogerio, Claudia, Ceccon, Mariana, Anthony, Áurea, amigos e amigas desses últimos anos e que renovam meu espírito.

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