“Em Curitiba ainda é muito forte a questão cultural europeia e a naturalização do racismo”

Falar com Silvana Bárbara é uma aula. Discreta, falando manso, ela é capaz de te ensinar muitas coisas. Sobre Curitiba, sobre as periferias, sobre a vida acadêmica. Mas principalmente sobre desigualdade e preconceito. Mulher, negra e periférica, ela é o […]

Falar com Silvana Bárbara é uma aula. Discreta, falando manso, ela é capaz de te ensinar muitas coisas. Sobre Curitiba, sobre as periferias, sobre a vida acadêmica. Mas principalmente sobre desigualdade e preconceito.

Mulher, negra e periférica, ela é o tipo de pessoa que desde a infância precisou aprender a lidar com os olhares alheios, com o modo como sutilmente as pessoas faziam perguntas diferentes para ela, teve de se acostumar a ser única de sua turma a passar por certas experiências.

Hoje,como professora universitária, ela ensina desenho técnico as jovens. E no Plural, participando do projeto Periferias, ensina muito mais a todo mundo que lê seus textos.

Você é uma mulher negra e periférica em Curitiba. Como isto influenciou tua vida?

Sou uma entre as muitas representantes da base da pirâmide social em uma cidade extremamente racista. A luta é árdua, porém, somente tive ideia do quanto esse contexto iria influenciar minha vida na adolescência. O preconceito para com as pessoas que moram nas periferias é repleto de estereótipos. Mas por ser uma mulher negra nascida e criada em Curitiba, palco de muitos movimentos de ódio, racismo e intolerância, vivencio muito mais o preconceito racial e de gênero do que por ser moradora de bairro periférico.

Como toda pessoa negra, tive a cruel experiência de vivenciar o racismo ainda na infância. Existe um grande estereótipo do senso comum em afirmar que nas periferias residem mais pessoas negras. Desde os tempos do ensino fundamental, estudando em escola pública no Alto Boqueirão, eu era uma das poucas crianças negras da turma e nessa época passei por muitos episódios racistas. No ensino médio fiz curso técnico e, na minha visão iludida da época de adolescência, achei que por meio dessa profissionalização eu iria conseguir um ótimo emprego em uma grande empresa. Mas foi tudo muito diferente. Até estágio eu tive dificuldade de conseguir e como jovem negra fui perceber que sempre era excluída nos processos seletivos por causa do racismo.

Diante desse problema da empregabilidade e com toda o incentivo de minha família, sempre segui em frente com meus estudos, cursei graduação e mestrado. E, mesmo com a qualificação acadêmica e profissional, pessoas brancas com menos experiência e nível de estudo passavam (e ainda passam) na minha frente nas oportunidades. Desde que há a consciência do racismo, uma pessoa negra sabe que para ter sucesso na vida não basta ser boa, tem que ser excelente. E eu afirmo que não basta ser excelente, tem que ser a melhor.

Eu vivencio o preconceito racial dentro da própria periferia. Se vou em um comércio do bairro, geralmente me apresentam os produtos mais baratos. Também marcou muito um episódio no qual fui tirar umas cópias de meus diplomas e a atendente perguntou: “Você é tudo isso?”

Quando conheci e comecei a participar ativamente do Movimento de Mulheres Negras (MMN) de Curitiba, o contato com pessoas de diferentes movimentos sociais me fez verificar na prática que infelizmente o racismo e o sexismo também permeiam esses espaços ditos “progressistas”. Até “cosplay” fazem, imitando de forma grotesca e equivocada um jeito de falar e de se vestir, que para essas pessoas, são típicos do povo da ”quebrada”.

Sou militante e atuar na promoção da representatividade negra, direitos, igualdade, equidade e educação é a minha forma de lutar contra o racismo.

Você sempre conta que vive na confluência de bairros importantes da cidade. Conta como você vê essa região hoje?

São quatro bairros periféricos da zona sul: Alto Boqueirão, Boqueirão, Sítio Cercado e Xaxim. Eu nasci e fui criada no Alto Boqueirão, nessa região de confluência, então pude ter a experiência de ver as mudanças ocorridas. Mesmo bem próximos, cada bairro tem suas especificidades.

O Alto Boqueirão é um bairro mais residencial que, ao longo do tempo, se desenvolveu em termos de infraestrutura e de serviços. Já o Boqueirão é mais antigo e estabelecido, que preserva o tradicional, misturando áreas residenciais com comércio e serviços.

O Sítio Cercado é aquela multidão, com muitos moradores e comércios. Se desenvolveu ao longo dos anos e hoje é uma área bem movimentada. O Xaxim considero um bairro mais tranquilo, de apelo residencial, que vem mudando bastante ao longo do tempo.

O que considero importante destacar é que há uma sensação de pertencimento muito forte entre a população da região para com esses bairros. Percebe-se que as pessoas crescem, constroem suas famílias, até mesmo ascendem econômica e socialmente, contudo não desejam sair para morar no centro ou em outro bairro considerado “nobre”. Por isso que há um grande interesse pela valorização da região, afinal, por que se deve aceitar que a periferia seja precária? Porque sair da região para residir em outra considerada “melhor”? Essa sensação de pertencimento mostra a força e a resistência das periferias.

O preconceito com as periferias acontece quando se pensa que somente nessas regiões ocorrem criminalidades. Conheço mães e pais de adolescentes que acham mais seguro que suas filhas e filhos se divirtam pelo bairro do que saírem para o centro. Também há preconceito ao considerar que todas as pessoas periféricas passam por situações de alta vulnerabilidade social. Existem muitas periferias dentro de cada bairro. Por isso mesmo elas são plurais.

Até onde um futuro prefeito poderia mudar a vida nessa região? O que seria mais necessário?

Em primeiro lugar, destaco a infraestrutura urbana e a saúde pública. O “zelo” por Curitiba é a atual estratégia de “marketing” da prefeitura, mas há um grande problema de mobilidade e acessibilidade na região. As ruas precisam ser bem mantidas, as calçadas seguras e as ciclovias e o transporte público eficientes.

Com relação aos problemas na área de saúde, não são específicos da região que compreendem os quatro bairros. É o que sempre ocorre, se as pessoas precisam ser atendidas com emergência, ficam muitas horas em uma UPA esperando por atendimento e até para serem encaminhadas aos hospitais. Muitas vezes há um mau atendimento nas UBS, e é por isso que em alguns casos, acompanhantes de pacientes perdem a paciência. Nada justifica agressões, mas se deve entender que as pessoas precisam ser tratadas com dignidade. Diante disso acrescento como necessidade a implementação de políticas de saúde eficazes para que a população da região possa ter acesso aos cuidados médicos de qualidade. Igualmente importante é a construção e a manutenção de centros de UBS bem equipadas e a promoção de iniciativas para o alcance de bem-estar.

Como preocupação global, a sustentabilidade socioambiental também deve estar presente nas regiões periféricas. Ao andar nas ruas da região, se percebem amontoados de resíduos jogados, praças com muita sujeira, gramas sem os devidos cortes. Ou seja, não há a devida manutenção e cuidados ambientais. Como dizem algumas pessoas que residem na região, “em bairro de pobre não tem fiscalização, por isso enche de lixo e mato”. Dessa forma, um (a) futuro (a) prefeito (a) deve implementar nesses bairros políticas que promovam a preservação ambiental, o incentivo às práticas sustentáveis e a gestão adequada de resíduos.

Também considero necessário investir na participação comunitária. Quando existe associação de moradores, uma prática comum é a de poucas pessoas decidirem por um bairro inteiro. Então é bem comum os conchavos, e boa parte da população da região acaba não tendo acesso ao poder de decisão. Como sugestão, poderia estabelecer canais eficazes de comunicação e incentivar a participação ativa das pessoas residentes nas decisões locais.

Teu caminho seguiu para a carreira acadêmica em desenho. Como foi isso?

Desde criança sempre gostei muito de desenhar e como sempre o fator empregabilidade foi destaque em minha vida, cursei o ensino médio Técnico em Desenho Industrial, no antigo CEFET-PR. Terminado o curso, para continuar na área, a primeira opção para o vestibular foi o curso de Design, e escolhi a habilitação em produto na UFPR. Porém, até o final da graduação, não pensava na possibilidade de seguir carreira acadêmica. Por isso não participei de projetos de iniciação científica, fui logo à procura de estágio, para atuar em empresas.

Quando terminei a graduação, senti a necessidade de acrescentar algo mais técnico à minha formação em design, então resolvi fazer processo seletivo para o mestrado em Engenharia de Produção, na própria UFPR, com pesquisa na área de desenvolvimento de produtos.

Informando sobre isso, algumas pessoas podem achar que foi tudo muito fácil, simples assim. Só que não, com o incentivo de minha família sempre lutei muito por essas conquistas. Tanto para ingressar no curso técnico quanto na universidade fiz processos seletivos para conseguir entrar em cursinhos solidários. E, como dizem, permanecer no CEFET e na UFPR é mais difícil do que entrar. E para quem vem da condição de mulher, preta e periférica, as dificuldades aumentam por causa do racismo estrutural. Nunca imaginei que poderia fazer um mestrado, ainda mais em uma universidade pública de alto nível.

Como bolsista do mestrado, tinha dedicação exclusiva para desenvolver minha pesquisa. Nessa época, o Centro Politécnico da UFPR era praticamente minha segunda casa e pude perceber que eu gostava de estar no laboratório fazendo pesquisas científicas. Então comecei a considerar a carreira acadêmica, mas, sendo muito tímida, não conseguia me ver como professora, sendo o centro das atenções em uma sala de aula. E tive dúvidas se eu seria uma boa profissional, se eu teria competência para ensinar.

Terminado o mestrado, depois de mais de um ano consegui um trabalho na área acadêmica, em duas instituições particulares, no ensino técnico e superior. Tive problemas com uma delas, fato que para mim ficou bem nítido que foi questão racial. Contudo, percebi na outra instituição que os estudantes reconheciam e respeitavam meu trabalho.

Hoje continuo na área acadêmica e destaco a importância de ser uma pesquisadora negra em uma sociedade na qual há a sub-representação de pessoas negras na comunidade científica. Apesar dos avanços na promoção da diversidade e da inclusão, a presença de cientistas negras e negros ainda é inferior em comparação com outros grupos étnicos. Isso é uma realidade preocupante que reflete desigualdades históricas e estruturais, resultado de barreiras sistêmicas que limitam o acesso às oportunidades.

Tem muita gente que nega o racismo em Curitiba. O que você pensa disso?

Muita gente nega o racismo pela falta de letramento racial, que é a compreensão mais profunda e crítica das questões raciais. Isso envolve o mito da democracia racial, a qual representa uma concepção equivocada que sugere que as relações raciais são harmônicas e igualitárias na sociedade. Essa idealização busca minimizar ou negar as profundas disparidades socioeconômicas e estruturais que historicamente afetaram e ainda afetam a população negra.

Diante da ideia de uma convivência pacífica e sem preconceitos, coloca-se uma máscara sobre as diferentes formas de preconceitos e de discriminações raciais, o que faz com que se repercuta a invisibilidade de questões como o racismo estrutural e as disparidades educacionais e de oportunidades.

Aqui em Curitiba ainda é muito forte a questão cultural europeia e a naturalização do racismo. É bem comum as pessoas falarem “agora tudo é racismo”, porém sempre foi. O que acontece é que houve uma maior conscientização vinda do avanço dos meios de comunicação e de grupos de representatividade, como os movimentos negros. Chamam nossas reivindicações de “mimimi”, mas na verdade não aceitam nossa voz de manifestação, pois desejam que tudo continue como antes, como se pessoas negras tivessem que passar por casos de racismo e aceitar de forma pacata, ou até mesmo rir juntas das “piadas”.

Muitas pessoas motivadas pelo desconforto, desinformação ou resistência às mudanças, optam por negar o racismo, mesmo diante de evidências incontestáveis. O problema que esse entendimento superficial das dinâmicas raciais pode resultar na perpetuação de estereótipos prejudiciais e na minimização das experiências de discriminação enfrentadas pela população negra.

O viés inconsciente e o racismo velado também estão entrelaçados e permeiam as interações sociais de maneiras muitas vezes sutis. O viés inconsciente se refere aos preconceitos automáticos e “não intencionais” que podem influenciar decisões e atitudes. É o fato de fazer suposições baseadas em aparências, como por exemplo, ver um negro correndo e achar que é ladrão, ou quando se subestima as habilidades e tem expectativas mais baixas com relação às pessoas negras.

Já o racismo velado se relaciona às práticas de discriminação mais dissimuladas, com origem nas estruturas institucionais, políticas e culturais, mascarando atitudes discriminatórias. Com exemplos, destaco as exigências de requisitos desnecessários em processos seletivos de emprego, ênfase em um “ajustamento” na aparência (como não permitir usar um cabelo black power), olhares insistentes quando uma pessoa negra ocupa uma posição de destaque, como se aquele espaço não pertencesse a ela.

Acredito que para enfrentar a negação do racismo há a necessidade de diálogos abertos, educação antirracista e um compromisso coletivo em acabar com as estruturas discriminatórias. Também é preciso falar sobre a branquitude, que é a vantagem e os privilégios que pessoas brancas têm em comparação às não brancas. Se as pessoas explorarem sua própria branquitude podem se conscientizar de seus privilégios, reconhecendo como essas vantagens muitas vezes passam despercebidas.

Este texto é parte do Periferias Plurais, um espaço em que o Plural convida jovens da periferia de Curitiba a falar sobre suas vidas e suas comunidades. O projeto tem apoio do escritório de advocacia Gasam.

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1 comentário em ““Em Curitiba ainda é muito forte a questão cultural europeia e a naturalização do racismo””

  1. Romeu Gomes de Miranda

    Parabenizo, primeiramente, pela abertura do espaço, Periferias Plurais. Quanto ao texto da Bárbara, …ufa! …..é de tirar o fôlego. Quanto conhecimento. É de fato uma aula especial, completa, visão panorâmica da periferia e do modus operando do racismo curitibano.

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