Três versões do caso Renato Freitas – e dois silêncios eloquentes

O Plural ouviu os envolvidos na abordagem truculenta da GM contra o vereador

Renato Freitas (PT) se tornou alvo das forças policiais que atuam em Curitiba. Ontem à noite (23), enquanto protestava contra o governo Bolsonaro no centro da cidade, o vereador foi abordado pela segunda vez em dois meses, desta vez pela Guarda Municipal. As imagens são de embrulhar o estômago: cinco homens brancos e robustos o imobilizaram no chão da Praça Rui Barbosa, pressionando seu rosto contra os paralelepípedos, enquanto um sexto filmava a humilhação.

Alerta de gatilho: as imagens são fortes, mas estão disponíveis como prova. O vídeo foi enviado à redação, mas não foi legendado pelo Plural.

A versão de Renato

O vereador convocou uma manifestação pelo impeachment de Bolsonaro, programada para as 18h de sexta. “Começou um pouco mais cedo, com poucas pessoas, por iniciativa de Renato, que aguardava a chegada dos assessores de seu mandato”, explica uma nota elaborada pela defesa do político.

“Uma pessoa de porte físico avantajado e postura intimidatória, que se apresentou na ocasião como policial militar (à paisana), abordou Renato lhe dando voz de prisão porque, ao falar contra Bolsonaro, estaria cometendo crime contra a segurança nacional”, segue o texto. “Renato continuou como estava, falando ao megafone e, nesse momento, o suposto PM saltou sobre Renato desferindo chutes e socos, alguns dos quais lhe acertaram, deixando hematomas leves no queixo, no braço e na perna.”

Enquanto recuava, em “um reflexo instintivo de autodefesa”, Renato teria projetado o megafone na direção do “agressor”. A defesa do vereador admite que o gesto causou uma “uma lesão leve que sangrou no momento”.

“Alegando que teria sido agredido injustamente por Renato e outras pessoas no local, o agressor procurou auxílio dos guardas municipais que estavam nas redondezas. Estes chamaram reforços e, acatando a versão unilateral do agressor de Renato, deram a este voz de prisão por lesão corporal”, afirmam os advogados Pedro Paulo Mendes Martins e Frank Reche Maciel.

Os guardas determinaram que Renato entrasse na viatura para ser conduzido à delegacia. “Nesse momento, Renato pediu, educadamente, dois minutos para aguardar a chegada de seus assessores que já estavam a caminho para encontrá-lo no local, como já programado na agenda do mandato. Os guardas, contudo, disseram que não iriam acatar a solicitação do parlamentar, ainda que a situação estivesse absolutamente sob controle (não havia tumulto algum).”

Em seguida, os GMs mandaram Renato entrar imediatamente na viatura, caso contrário ele seria algemado. O vereador insistiu um pouco mais para que aguardassem e eles “reagiram subitamente com uso de força desproporcional, com agressiva técnica de imobilização empregada por ao menos cinco guardas municipais, que o deitaram de bruços, ajoelharam-se sobre ele e, depois de o algemarem, arrastaram-no para o camburão da viatura.”

Enquanto Renato estava no chão, um guarda municipal girou o rosto do parlamentar para que outro tirasse fotos – o que seus advogados entendem como “uma espécie de escárnio ou mesmo premiação pela ‘conquista’”. Durante o trajeto até a delegacia, de acordo com o vereador, os guardas celebraram a prisão, cantando e ouvindo músicas em volume alto na viatura.

Na delegacia, Renato foi autuado em flagrante por lesão corporal leve e desobediência. “O agressor de Renato foi autuado por estar ‘envolvido’ na contravenção de ‘fingir-se funcionário público’. Descobriu-se, mais tarde, que se tratava de um vigia de segurança privada”, detalha a nota. “Depois de ouvido, foi embora de carona na viatura com os guardas municipais. Renato foi liberado.”

Militantes na delegacia com Renato, após a liberação. Foto: Instagram/reprodução

Uma audiência preliminar está marcada para o dia 14 de setembro, às 15h30. Os advogados frisam que é a segunda prisão do vereador durante o mandato e a nona desde que Renato iniciou sua atividade política, em 2016. “Nada obstante, até hoje, pouco redundem em ações penais e nunca, sobretudo em condenações definitivas.” 

Neste sábado (24), o político conversou com Rogerio Galindo sobre o ocorrido.

A versão de Reinaldo

O homem que a defesa de Renato chama de “agressor” é o aposentado Reinaldo Generoso Borges Machado, de 57 anos. Ele trabalhou 25 anos como vigilante, mas garante que nunca foi segurança, policial militar nem bolsonarista – apenas um “cidadão de bem” que ama o Brasil. Hoje, comanda uma clínica de fisioterapia e estética junto com a esposa e vive perto da Rui Barbosa. 

Ontem, ele saiu de casa em direção ao Magazine Luiza para pagar uma conta, depois passou na Caixa Econômica para fazer uma transferência. Foi quando cruzou com o vereador Renato Freitas, perto da Westphalen. “Esse tal de Freitas, esse militante do PT, estava lá falando fora Bolsonaro e nesse momento ele estava discutindo com uma senhora.”

Na versão de Reinaldo, a senhora estava dizendo a Renato que ele não devia incitar o ódio ao governo – e aí ele resolveu intervir pedindo respeito ao rapaz. “Eu amo meu Brasil e respeito os idosos. Tomei as dores de uma senhora que poderia ser minha mãe. Ou uma irmã mais velha. Ele começou a gritar fora Bolsonaro e fora Bolsonaro e colocou o megafone que ele estava na mão no meu rosto”, afirma.

“Eu estava querendo me retirar quando ele começou a gritar de novo no meu ouvido e me chamou de filha da puta pra cima, entre outros palavrões, tipo vai se foder. Eu não chutei ele nem uma vez como ele falou”, narra Reinaldo, que em meio à confusão foi acertado pelo vereador com o megafone e precisou levar dois pontos. Mais tarde, ele foi atendido no posto do Boa Vista. “Três medicamentos, e se tivesse sintomas de afundamento de crânio deveria voltar, mas graças a Deus estou bem.”

Foto: arquivo pessoal

“Na hora, eu falei pra ele: por que você fez isso, cara? Daí nisso um dos integrantes que estavam junto com ele ali me empurrou e me calçou. Eu caí no chão e eles me porraram, começaram a me chutar. Eu levantei e fui direto na Guarda Municipal ali na Rui Barbosa”, relembra. Reinaldo fala que não sabia que Renato era vereador e só na hora de chamar a GM percebeu que ele era conhecido dos guardas.

“E daí ele colocou nas mídias sociais e falou nas reportagens que eu cheguei nele, agredi ele, mas isso é descabido. Eu não sou militante de nenhum partido, nem do PT e nem de Bolsonaro, eu sou uma pessoa neutra. Eu só fui falar sobre os meus direitos e sobre respeito. Ele agiu de má fé quanto à minha pessoa e foi agressivo. Ele tem que representar o povo e não ficar ameaçando cidadãos.”

Na delegacia, Reinaldo afirma que militantes do PT e do MST compareceram, além de advogados defensores dos direitos humanos. “Chegaram pessoas lá me chamando de racista, sendo que eu sou moreno. A minha mãe é uma pessoa de origem polonesa e o meu pai era negro. Eu fui escoltado pela Guarda Municipal porque eles queriam me pegar de qualquer jeito e praticar violência contra a minha pessoa, né? Daí eu tive que sair da sala onde estava aguardando na recepção da delegacia e ficar junto com a Guarda Municipal até o delegado me ouvir.”

Reinaldo defende que a GM não foi truculenta em momento algum contra Renato. “Eu acho que a Guarda Municipal merece os parabéns pela ação porque eu acho que isso é fundamental pro cidadão, eles fizeram o papel deles”. Além disso, ele reforça que não se apresentou a Renato como PM. “O Freitas perguntou se eu era policial, e outros militantes… Eu estava com um gorro da polícia de NY, por isso ele deve ter achado que eu era.”

O ferimento. Foto: arquivo pessoal

A versão da GM

O Termo Circunstanciado (TC) registrado no 2.º Centro Integrado de Atendimento ao Cidadão diz que às 18h20 os guardas Alessandra Costa de Araújo Barbosa, Carlos Eduardo Afonso Rosa Ribeiro e Marcelo Franco, que trabalham no primeiro módulo da Praça Rui Barbosa, foram solicitados por Reinaldo, que alegou ter sido agredido fisicamente “por um cidadão que estava próximo ao local”. A ocorrência foi atendida pelo delegado Rodrigo Silva de Souza. 

“De imediato a equipe foi até o local e avistou o cidadão posteriormente identificado como sendo Renato de Almeida Freitas Júnior (sem documentos), vereador da cidade de Curitiba que segundo o denunciante Reinaldo foi autor das agressões juntamente com mais um indivíduo que se evadiu do local (sic)”, descreve o documento. Com o megafone, Renato teria feito uma “lesão na testa próximo ao olho esquerdo” da “vítima”. Depois, junto com o sujeito não identificado, teria chutado e derrubado Reinaldo no chão, causando mais uma lesão em sua perna esquerda. Ambos os ferimentos teriam sangrado. 

O ferimento na perna de Reinaldo. Foto: arquivo pessoal

O TC segue detalhando o momento em que a GM chegou ao local e “orientou o autor das agressões Renato e convidou-o para acompanhar a equipe até a delegacia devido um outro cidadão acusá-lo de agressão”. O vereador teria se comportado de “maneira hostil e não colaborativa, resistindo a ser algemado e conduzido”. Segundo a equipe, Renato também teria acusado os guardas municipais de roubarem seu telefone celular – e isso teria sido suficiente para justificar uma voz de prisão.

“Foi necessário o uso de algemas conforme preconiza a legislação em vigor (…) com o intuito de garantir a segurança da equipe de guardas municipais de terceiros e do próprio conduzido que não estava colaborando com a equipe”, resume o documento, sem fazer menção à abordagem truculenta. 

Os silêncios eloquentes

Já faz mais de 24 horas que Renato foi detido pela Guarda Municipal. O ex-presidente Lula comentou o fato. Senadores, deputados estaduais e federais também. A Câmara de Curitiba e o prefeito Rafael Greca, entretanto, ficaram em silêncio.

A Câmara é a instituição de Renato, mas nem o tradicional corporativismo parlamentar foi suficiente para uma nota de apoio ao vereador. Na visão de Renato, o silêncio tem a ver com o fato de ele não ser visto como um igual pelos vereadores de Curitiba.

Rafael Greca – a quem, em última instância, a Guarda Municipal deve explicações – não falou palavra sobre o caso. Nas redes sociais escreveu sobre cerejeiras da Rua XV, deu a receita de rollmops com Arenque do Mar Báltico, mas não comentou a ação da Guarda, nem com um protocolar “será investigado”.

Da prefeitura, institucionalmente, partiu apenas uma nota curta neste sábado, já dizendo, ainda antes de qualquer investigação, que a Guarda não errou.

“A Guarda Municipal informa que todos os procedimentos estavam dentro do Protocolo de Operações Padrão. Foi utilizado contato verbal através da negociação e mediação de conflitos e, posteriormente, o uso de energia moderada para contenção do vereador para resguardar a integridade física de todos.”

Violação de direitos

O Plural enviou as imagens às quais teve acesso para análise de dois especialistas: Vera Karam Chueri e Miguel Godoy, ambos professores de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR). 

“Não há dúvida de que houve violação de direitos na abordagem de Renato Freitas”, começa Miguel, sendo corroborado por Vera: “Houve total violação! O direito de protesto é o primeiro e principal direito, é o direito que viabiliza o exercício de todos os outros!”

No meio da abordagem, os GMs questionaram o vereador sobre uma “solicitação” para manifestação, que ele não tinha, mas Vera explica que a falta de autorizações por parte do poder público não justifica a ação dos guardas. “Só precisa de autorização, se for usar espaço público, para garantir o direito de manifestação, nada mais. Ela não pode servir para inviabilizar a manifestação.”

Miguel identifica pelo menos três direitos violados durante a abordagem: “Houve uma violação da liberdade de expressão dele, uma violação da integridade física e uma violação ao direito de ir, vir e permanecer.”

“Ele estava exercendo seus direitos como cidadão e vereador. Aquela abordagem totalmente desproporcional, baseada numa única declaração, é completamente desnecessária. Parece ter havido evidente abuso de autoridade”, complementa o profissional, frisando que ficou chocado com as imagens. “É inacreditável que um cidadão, uma pessoa, um advogado, um vereador da cidade, seja tratado dessa forma pela força de segurança do município.”

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4 comentários em “Três versões do caso Renato Freitas – e dois silêncios eloquentes”

  1. Luís Alberto Menon de Araújo

    Parabéns pela reportagem e por expor três versões, seria ainda mais legal (e bem mais trabalhos) conversar com o pessoal da farmácia e outros estabelecimentos ao redor para escutar versões de pessoas que não estavam envolvidas.

  2. Na ratolândia, o bolsonarismo, o morismo e quejandos são de arrepiar o bom senso e a qualquer traço inteligência humana. O ex-vigilante e os GMs sõ atestam o precaríssimo nível de covardia e de intelecção sobre o que é “liberdade de expressão”. O tipo que eles apoiam falava em exterminar 30 mil, defende armas, incita ódio…o que dizer], afinal…? Lamenta-se por cenas grotescas que vão cada vez mais fixando Curitiba no epicentro de vergonhas nacionais…

  3. Obrigada Jess, por relatar o que realmente aconteceu. Mas, levar uma pancada na cabeça é normal, principalmente se for de um vereador jovem, e mal educado, que não respeita negros, idosos e aposentados. Eu proponho que a Câmara dos Deputados faça periodicamente teste toxicológico em vereadores que são comumente presos, por agredir cidadãos.
    REINALDO G.B. MACHADO.

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