Redução de Humanas no currículo escolar afeta liberdade crítica dos estudantes

Compreender o mundo, debater e argumentar são competências indispensáveis para cidadania, defendem educadores

A decisão do governo Ratinho Jr. (PSD) de reduzir a carga horária das disciplinas da área de Humanas – Filosofia, Sociologia e Artes – nas escolas estaduais do Paraná acumula repercussões. Desde que a mudança foi anunciada, no dia 21 de dezembro, professores, alunos, pesquisadores e entidades se mobilizam contra a nova matriz. Entre os argumentos defendidos está a falta de debate, transparência e justificativa plausível para a composição do novo currículo, que reduziria as chances de uma melhor compreensão e argumentação social, afetando a liberdade crítica dos estudantes da Rede Pública de Educação.

Em comum, os especialistas afirmam que a nova disposição curricular vai enfraquecer a qualidade do Ensino Público, prejudicar estudantes em exames de seleção e vestibulares – especialmente em universidades públicas – e impactar a rotina e o emprego dos docentes das disciplinas com oferta reduzida.

“O ensino da Filosofia, combinando análise de questões filosóficas tradicionais com a visitação aos textos de uma tradição que, remontando à Grécia antiga, chega a discussões contemporâneas, familiariza os educandos a debater pontos de vista diferentes dos seus. Isso habilita-os ao debate argumentativo, à aceitação da controvérsia, à prática de fundamentar em argumentos opiniões de toda ordem, competências que são indispensáveis ao exercício da cidadania numa sociedade pluralista e democrática”, diz um trecho da carta assinada pelos professores do Departamento de Filosofia da UFPR.

“Em Artes, além de História da Arte, ou seja, o acesso à Cultura, os estudantes têm as práticas e técnicas artísticas que desenvolvem a criatividade e sensibilidade do estudante. A Arte está em praticamente tudo, desde a embalagem do mercado da esquina até as grandes obras. Como seria um mundo sem Música, sem Cinema, sem Literatura?”, indaga o Coletivo de Humanidades.

O documento encaminhado nesta quinta-feira (7) à Secretaria de Educação e Esportes pelos Departamentos de Sociologia, Antropologia e Ciência Política da UFPR destaca que as modificações acarretam uma perda imediata do perfil integrador proposto pelos projetos pedagógicos das escolas, “essencialmente interdisciplinares”; uma fragmentação das disciplinas, reduzindo tempos de integração, socialização e sensibilização que afeta o fomento à autonomia e à liberdade crítica dos estudantes; e, também, retoma a “construção de hierarquias entre áreas de conhecimento é uma prática historicamente fracassada na educação global”.

“Ainda que a SEED não reconheça – até porque parece desconhecer a realidade pedagógica das escolas – há uma integração orgânica dos conteúdos de Sociologia e Língua e Literatura Portuguesa, bem como de Filosofia e Matemática. Logo, a redução de carga horária afetará negativamente na assimilação das demais disciplinas”, afirmam docentes e pesquisadores na carta.

Tanto alunos como professores também têm alertado para o impacto mais imediato: uma possível desvantagem dos estudantes das escolas públicas em processos seletivos para ingresso nas universidades do país. A UFPR – o maior e mais importante vestibular do Estado – cobra conteúdos específicos de Sociologia e Filosofia para os cursos de Ciências Sociais, Filosofia, Psicologia e Direito. O Enem também cobra componentes curriculares destas disciplinas na prova de Ciências Humanas e suas Tecnologias.

“Os vestibulares, concursos e Enem não deixarão de cobrar essas áreas em suas provas. Isso privilegia de forma direta os estudantes que não deixarão de ter esses conteúdos, principalmente das escolas privadas que sempre mantiveram essas áreas, inclusive no Ensino Fundamental”, ressalta o Coletivo de Humanidades.

Para o grupo, a formulação da nova matriz curricular ocorreu em molde “ditatorial”. Professores e alunos questionam o fato de o governo não ter chamado a comunidade escolar para opinar sobre as propostas. “Nenhuma alteração feita na Educação pelo governo de Ratinho Jr teve algum tipo de debate com a comunidade escolar. Essa foi mais uma. O governo não escuta estudantes e professores, na prática, ele não se preocupa com quem está na sala de aula, no dia a dia das escolas”, afirma o grupo.

Novas áreas do saber

Alertas já foram encaminhados ao Ministério Público (MPPR) e à Assembleia Legislativa do Paraná (Alep), onde deputados da oposição não descartam pedir uma revogação da mudança – instituída por meio da Instrução Normativa Conjunta 11/2020. O texto foi assinado no dia 18 de dezembro, mas o site da Seed só deu visibilidade à nova matriz quatro dias depois.

Amparadas pela Lei da Reforma do Ensino Médio, sancionada pelo ex-presidente Michel Temer (MDB), as alterações seguem como referencial à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), de 2018, que descaracteriza Artes, Educação Física, Filosofia e Sociologia como áreas do saber, coloca Português e Matemática como as únicas disciplinas obrigatórias em Rede Nacional e concede autonomia aos Estados para adequar o restante de seus currículos, de acordo com a realidade de cada região.

Aula de Música/Artes em colégio estadual de Curitiba. Foto: Hedeson Alves/Seed

Em todo o Brasil, pelo menos 17 Estados trabalham para conformar seus currículos escolares às premissas da Lei da Reforma do Ensino Médio e da BNCC, mostram indicadores do Movimento Pela Base, que defende a implementação deste novo padrão de ensino.

No Paraná, a alteração chegou com a justificativa de unificar o currículo da Rede Estadual e aumentar as chances de desempenho dos estudantes em exames nacionais, como o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). Foram estabelecidas, assim, quatro aulas semanais de Português, três de Matemática e a inclusão de aulas de Educação Financeira. Para fechar o arranjo, o trio de Humanas passará de duas para uma hora semanal em cada um dos três anos do Ensino Médio. Autoridades das áreas, no entanto, contestam a eficácia do método.

“Não me parece, e podemos comprovar isso futuramente, que [a mudança] vai melhorar as métricas educacionais, pelo contrário. O Português e a Matemática, por si só, são importantes e a gente nem questiona isso. Mas, para compreender um enunciado, um problema, é preciso que você tenha uma visão ampla e quem te dá essa visão são as Humanidades de forma geral. É um trabalho em conjunto”, replica Marisete Horochovski, doutora em Sociologia e professora do curso de Ciências Sociais e do Mestrado Profissional em Sociologia da UFPR. “Temos que pensar para quem interessa esse retrocesso”, questiona.

A decisão da pasta do secretário Renato Feder – que chegou a ser cotado para assumir o Ministério da Educação do governo Jair Bolsonaro, em 220 – vem repercutindo desde que chegou ao conhecimento público.

Manifestações contrárias

No dia 30 de dezembro, a Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof) soltou uma nota de repúdio em que coloca o novo modelo, ao lado da recente militarização de 186 escolas paranaenses, como parte de um desmonte da Educação Pública estadual.

No mesmo dia, o Departamento de Filosofia da UFPR endereçou ao MPPR uma carta em que questiona a transfiguração da matriz curricular e pede uma revisão das novas regras adotadas (acesse a carta completa no fim do texto).

E, nesta quinta (7), docentes e pesquisadores dos Departamentos de Sociologia, Antropologia e Ciência Política, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e do Mestrado Profissional em Sociologia da UFPR assinaram uma carta conjunta, enviada a Feder, em que pedem explicações sobre a modificação da estrutura curricular adotada (acesse a carta completa no fim do texto).

O Coletivo de Humanidades, formado por docentes e estudantes de Artes, Filosofia e Sociologia da Rede Estadual, também voltou a se reunir para discutir o assunto. O grupo passou a fazer reuniões semanais para costurar frentes de mobilizações e busca engajamento de entidades e parlamentares para tentar reverter a nova distribuição de disciplinas.

Na Alep

Apesar do recesso parlamentar, a discussão já começou na Alep. Na última terça-feira (5), deputados da oposição levaram os questionamentos ao secretário-chefe da Casa Civil do Executivo, Guto Silva. De acordo com o líder da oposição na Casa, deputado Professor Lemos (PT), há indícios de que a conversa pode repercutir e ampliar o debate. “Entendo que é de fundamental importância esse assunto e que o governo precisa revogar e restabelecer, no mínimo, a matriz que já estava implementada”, disse o deputado ao Plural.

Segundo o parlamentar, as prerrogativas trazidas pela Instrução Normativa aumentam o poder de determinação da Seed, uma vez que encolhem o direito que as comunidades escolares têm de formatarem suas matrizes curriculares. Um exemplo imediato, diz ele, é a redução de 30 para 25 aulas na matriz até então vigente no Colégio Estadual do Paraná (CEP). Maior colégio da Rede Pública, o CEP abriga logo na entrada um busto em homenagem a um de seus professores pioneiro, o educador Dario Vellozo, que também foi um importante nome paranaense nos estudos da Filosofia.

“No Paraná, se você quiser, enquanto governo, fazer uma matriz curricular maior do que 25 aulas por semana você pode. Você não precisa diminuir disciplinas de Filosofia, Sociologia e Artes para ampliar o número de aulas de outras disciplinas ou até introduzir novas disciplinas”, argumenta o deputado. “Você quer uma escolar para formar quem? O governador gostaria de formar os filhos dele nessa escola com o currículo empobrecido? Garanto que nenhum pai, nenhuma mãe quer isso.”

Professores

Conforme Hermes Leão, presidente da APP-Sindicato, que representa os docentes da Rede Pública estadual, a entidade chegou a requisitar reuniões com a Seed antes de pasta bater o martelo a respeito da nova composição da matriz curricular. O pedido foi feito durante a tramitação do controverso processo para militarizar das escolas estaduais – já que a nova grade agora se assemelha ao conjunto de disciplinas que será ofertado nestas unidades.

“No dia 4 de novembro, quando fizemos um ato público por conta de pautas dos professores, levamos esse tema ao secretário, dissemos que se tratava de um debate longo e que não era simplesmente recuar a um tempo anterior em que determinadas disciplinas tinham uma única aula por semana. Ele disse que tinha como fazer esse debate e ficou agora para janeiro a retomada desta conversa, à luz da distribuição das aulas que vai ser feita agora em fevereiro. Mas, em dezembro, soltaram este ‘presente’”, relata o presidente da APP.

A entidade se prepara para acompanhar a situação dos professores que podem ser afetados com as mudanças determinadas. “Retomar esta prática de uma aula por semana implica em dobrar o número de estudantes a serem atendidos por cada professor, dobrar, inclusive, o número de escola, porque é impossível pegar uma única escola”, observa o sindicalista.

“Consequentemente, é impossível fazer um trabalho de qualidade porque se trata de uma condição desumana. Assim, professores que trabalham em duas escolas para cumprir suas horas mínimas, o que a gente entende que é o máximo de escolas que dá, acabarão tendo que dobrar o número de unidades. Isso não faz o menor sentido, nem do ponto de vista organizativo, da vida dos professores, nem do ponto de vista da aprendizagem dos estudantes”, avalia Leão.

Ensino Médio terá redução de uma aula semanal de Humanas. Foto: Seed/AEN

Levantamento do Coletivo de Humanidades – que tem professores em sua composição – diz que a carga dobrada dos docentes representará cerca de 1,2 mil alunos por semana, no mínimo 3,4 mil atividades para preparar, com a correção de 30 registros de classe semanais em quatro ou cinco escolas diferentes em municípios distantes.

Além disso, a redução da oferta de disciplinas deverá afetar milhares de professores contratados via regime Processo Seletivo Simplificado (PSS). Sob este modelo, segundo o Coletivo, há hoje 1.846 docentes de Filosofia; 2.032 de Sociologia e 3.770 de Artes.

Para o grupo, a nova grade curricular a que os alunos da Rede Estadual serão submetidos a partir de 2021 não tem a ver com uma decisão técnica, mas, sim política. “Há em todas essas mudanças um verniz de modernização, mas na prática é a velha receita de caça às bruxas. A aparência de uma Educação moderna nada mais é do que a retirada de uma Educação Humana voltada para o desenvolvimento social e a fabricação de um currículo defasado que visa preparar as futuras gerações para o subemprego”, avalia o coletivo.

“Calibragem na carga horária”

Em entrevista ao Plural, o diretor de Educação da Secretaria Estadual de Educação (Seed), Roni Miranda, contesta um suposto menosprezo da pasta em relação às disciplinas de Humanas e diz que o novo currículo é uma forma de equiparar o peso das áreas estudadas e garantir mais chances de emprego aos egressos da Rede Pública.

Segundo ele, com a nova proposta, o Estado vai garantir a oferta de todas as disciplinas da grade em todas as séries, como já ocorre com as etapas finais do Ensino Fundamental, sob responsabilidade da Seed.

“Os estudos da secretaria, da equipe técnica, da equipe de currículo e de formação de professores mostram, através de comprovação, que para a gestão de Rede uma matriz única traz um trabalho mais de Rede, pensando na aprendizagem do estudante e na organização, desde formação de professores e até mesmo para a movimentação do estudante”, coloca.

Sobre os estudos que embasaram a decisão, o diretor disse que se trata, na verdade, de um levantamento interno que analisou a quantidade de disciplinas distribuídas por áreas, o que indicou a necessidade de uma “calibragem de carga horária”, já que conteúdo de Humanas ocupava maior peso no currículo.

“A gente fez um levantamento de áreas de Exatas e de Humanas. Eu tenho duas aulas de História, que é de Humanas, duas de Geografia, que é Humanas, duas de Sociologia, que é Humanas, e uma de Filosofia, que é Humanas, e mais Língua Portuguesa, que o currículo trabalha muito com análise de texto, de texto de gênero, de argumentação, e introduz bastante do aspecto do senso crítico, que é a base das Ciências Humanas. Então, a gente equiparou por áreas, como traz essa proposta do novo Ensino Médio”, explica o diretor da Seed.

De acordo com a pasta, os debates se concentraram nos setores internos da secretaria e não se expandiram para a comunidade escolar porque isso “dificultaria chegar a uma conclusão”.

“Porque se eu coloco a pauta, cada setor vai fazer a defesa de seu segmento e isso dificulta muito”, afirmou Miranda, que entende não haver nenhuma irregularidade na nova matriz. “A lei me diz que eu tenho que ofertar essas disciplinas [Sociologia, Filosofia e Artes], mas não me diz a carga mínima.”

Ainda segundo o diretor, a Seed estudava ampliar em 2020 a carga horária do Ensino Médio, mas a pandemia e a baixa arrecadação do governo adiaram os planos. Agora, afirma a pasta, o aumento de horas a serem cumpridas será implementado em 2022, quando o Estado pretende colocar em prática as regras do novo Ensino Médio.

Como especifica o projeto nacional, a proposta não prevê, contudo, o aumento da oferta das disciplinas tradicionais, mas uma reelaboração de oferta de conteúdos em áreas “escolhidas” pelos próprios alunos.

Foco no emprego

Apesar de dizer que reconhece a relevância dos conteúdos de Sociologia, Filosofia e Artes para exames de seleção e vestibulares, a Seed justificou que a nova matriz também levou em consideração um estudo interno da pasta que teria indicado como maior preocupação dos alunos o emprego, e não o vestibular.

“Infelizmente, a absorção dos nossos estudantes no Ensino Superior é em torno de 20%. Acaba que esse aluno tem que ser preparado no Ensino Médio para ele ter um acesso na sua vida imediata”, defende o diretor da Seed, Roni Miranda. “A gente sabe dessa necessidade de ampliação de vagas nas universidades, mas a nossa responsabilidade é com o aluno do Ensino Médio. E [quem não tem acesso às universidades] precisa continuar sua vida. É responsabilidade do Estado preparar ela para que, por seus meios, consiga acessar uma universidade privada, outras fontes de acesso, como o Prouni, o Sisu ou o Fies.”

Quanto aos professores, a Seed afirma que nenhum profissional concursado será desligado e que, para evitar a dispersão de locais de trabalho, aos docentes será dada a possibilidade de: integrar o corpo de professores de projetos em contraturno, ministrar disciplinas de Religião e, nas escolas cívico-militares, trabalhar com conteúdos de cidadania e civismo.

Leia aqui as cartas elaboradoras por docentes e pesquisadores da UFPR

 

Sobre o/a autor/a

4 comentários em “Redução de Humanas no currículo escolar afeta liberdade crítica dos estudantes”

  1. Uma forma de diminuir o leque de conhecimento dos alunos e as opções em suas carreiras futuras. Eu amo a área de humanas e ela é tão importante quanto a área de exatas, aliás durante a história inteira elas sempre andaram de mãos dadas. Não se deve excluir uma para aprofundar o conhecimento na outra. Mais um retrocesso com esse governo.

  2. Alysson Ramos Artuso

    A luta pela alteração da matriz é totalmente legítima e pertinente. Mas mesmo se não provocar reversões, há um espaço de resistência a ser considerado: quem ministrará a disciplina de educação financeira. A normativa estadual não estabelece nada e, sendo Economia, Administração e Contabilidade campos do conhecimento que pertencem à grande área de Sociais Aplicadas, essa disciplina deveria ficar a cargo justamente de docentes da área de Humanidades e Sociais Aplicadas: História, Geografia, Filosofia e Sociologia. São os mais indicados para tratar de diferentes visões e correntes econômicas, papeis das pessoas no orçamento doméstico, relações de produção e consumo, indústria cultural, capitalismo financeiro, papel da publicidade no mercado, empreendedorismo social, cooperativismo, associativismo, economia solidária, uberização, etc. São todos conteúdos ministrados nas disciplinas de História, Geografia, Filosofia e Sociologia que podem migrar para a nova disciplina de modo a manter a atual carga horária docente e os conteúdos relativos a essa área. Uma pessoa que se licenciou em Geografia, por exemplo, aprendeu e debateu infinitamente mais sobre economia e finanças do que quem se licenciou em Matemática, que não cursou nenhuma disciplina que fizesse simples menção ao assunto em sua graduação.

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