Leis reservam direitos específicos para indígenas que cometem crimes no Brasil

Para pesquisador, é preciso assumir o direito à diferença não como um privilégio aos indígenas, mas como um reconhecimento da cultura de cada povo e etnia do país

No Brasil, cada povo originário tem uma organização própria de resolução de conflitos. Apesar disso, em determinadas situações, a depender de fatores como o tipo de crime e o local de residência, a pessoa indígena passa a responder ao sistema criminal do estado.

No entanto, esse tratamento jurídico penal de uma pessoa pertencente a um povo tradicional precisa seguir um conjunto de direitos específicos previstos na legislação.

O encarceramento indígena é documentado no Brasil pelo menos desde o século 18. Naquela época, a prisão se dava na forma do aldeamento, que era, basicamente, a reunião das populações tradicionais em aldeias próximas aos povoados coloniais portugueses. Essa forma primária de encarceramento era uma tentativa de “assimilar” o indígena à sociedade nacional branca, por meio de catequese e da proibição das línguas nativas. 

Em 1973, com a promulgação do Estatuto do Índio, o cenário mudou, e as populações originárias passaram a ter um status legal diferenciado em relação a outros grupos que compõem a sociedade. O documento garante que, no caso de condenação, o indígena seja punido dentro e de acordo com sua cultura, conforme normas do seu próprio povo. 

Com a redemocratização do país em 1988, a lógica de pluralidade étnica e de soberania cultural dos povos transformou-se também em garantia constitucional, especialmente a partir dos artigos 231 e 232 da Constituição Federal.

Legislação 

Além da Constituição e do Estatuto, há, atualmente, marcos normativos importantes que regulamentam o atendimento às pessoas indígenas acusadas, condenadas ou que respondem a processo criminal no Brasil.

As Resoluções 287 e 454 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), lançadas em 2019 e 2022, respectivamente, estabelecem procedimentos ao tratamento das pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade, e dão diretrizes para assegurar os direitos dessa população no âmbito criminal do poder Judiciário. 

Ambas têm como princípios a autoidentificação dos povos, o diálogo interétnico e intercultural, a territorialidade indígena, o reconhecimento da organização social e das formas próprias de cada povo indígena para resolução de conflitos, a vedação da aplicação do regime tutelar e a autodeterminação dos povos indígenas.

Já no âmbito dos órgãos estaduais de administração penitenciária, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) possui uma regulamentação a respeito dos procedimentos para custódia de pessoas indígenas e a nota técnica 53, que contém orientações para tratamento desse público.

A legislação vigente e acordos internacionais (como a Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos) recomendam que sejam aplicados aos indígenas outros tipos de punição além do encarceramento, além de atenuação ou flexibilização da pena. O sistema indígena de justiça, resolução de conflitos e punição deve ser admitido e, em caso de sentença de reclusão, o recomendado é utilizar o regime especial de semiliberdade.

Descompasso na prática

Apesar de todo o regimento, existe ainda uma falta de preparo do sistema prisional brasileiro para tratar da questão indígena, afirma Felipe Kamaroski, antropólogo da Universidade Federal do Paraná (UFPR) que atua desde janeiro deste ano como perito da Justiça produzindo laudos criminais antropológicos.

“Na prática, as normas e legislações sobre como atender a população indígena não têm feito diferença para o Estado. Por exemplo, o Estatuto do Índio vai citar que existem quatro graus de integração do indígena à sociedade. Isso é uma visão evolucionista que já foi superada pela Constituição, mas que se mantém no discurso de boa parte dos operadores do Direito. Existe um descompasso muito grande entre o que está escrito na lei e o que é, na prática, executado”, afirma.

Para Kamaroski, o grande problema está no entendimento da maior parte da população de que todos seriam iguais perante a Lei. Na visão do pesquisador, é preciso assumir o direito à diferença não como um privilégio aos indígenas, mas como um reconhecimento da cultura de cada povo e etnia do Brasil.

“Essa ideia [de que todos são iguais perante a Lei] afrontaria o tratamento diferenciado para a população indígena no sistema penal. No senso comum, isso continua existindo e acaba sangrando para as categorias do mais alto escalão do Estado. Mas hoje, a partir da Constituição, a gente sabe que os indígenas são pessoas com direitos diferenciados.”

Falta de preparo

De acordo com a coordenadora do Núcleo de Política Criminal e Execução Penal da Defensoria Pública do Paraná (DPE-PR), Andreza Lima de Menezes, na maioria das vezes, os indígenas são condenados muito rápido, sem que se tenha cuidado com o processo e a cultura dos povos. 

“O Estatuto [do Índio] se baseia ainda numa visão de que existem indígenas ‘aculturados’, e isso contamina muito as decisões. Não vemos uma preocupação com a preparação do profissional para entender essas populações indígenas. A gente trabalha com pressupostos completamente equivocados sobre os indígenas.”

O primeiro caso em que a DPE-PR atuou recorrendo ao laudo antropológico, recurso que fornece subsídios e contexto para o entendimento dos costumes e tradições da comunidade do acusado, foi o de Juliana*, indígena Kaingang presa em agosto de 2021 por homicídio simples contra o companheiro. Em julho deste ano, ela teve a prisão preventiva revogada e passou a cumprir a pena em liberdade provisória. 

Juliana morava em uma aldeia em Ivaí, na região dos Campos Gerais do Paraná, bastante afetada pela presença de pessoas e da cultura branca. Ela abandonou os estudos ainda quando criança para ajudar a família na produção e venda de cestarias de Taquara e, na adolescência, saiu da aldeia e passou a sofrer com alcoolismo. Esses fatores, segundo o laudo antropológico anexado ao processo, geraram consequências na vida dela. 

Para a advogada Nathaly Munarini, que coordena o Observatório Justiça Criminal da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), apesar do encarceramento de pessoas brancas também ser um problema no país, a situação dos indígenas é ainda pior. 

“Num quadro geral há um despreparo do sistema de justiça brasileiro, talvez não intencional, mas estruturante. A norma existe, mas a aplicabilidade é muito precária. A violação dos direitos dos indígenas começa desde a citação para comparecer à delegacia, já no inquérito. São questões que ferem constitucionalmente o direito de defesa”, afirma.

Munarini relembra que o sistema criminal poderia oferecer oficinas ministradas por advogados indígenas ou pessoas que trabalham nessa área na pesquisa, além de formação específica para pessoas que compõem carreiras nesse campo.

O processo no Paraná

No Paraná, a responsabilidade de garantir às pessoas indígenas os direitos constitucionais (como o acesso à Justiça) no processo de investigação deveria recair, principalmente, sobre a Defensoria Pública e o Ministério Público do estado.  

Por meio da deliberação 037, de 2021, a DPE-PR estabeleceu um roteiro para atendimento da população indígena, enquanto o MP trabalha para que sejam cumpridas as previsões existentes nas normativas do CNJ.

Diante de indícios ou informações de que a pessoa acusada seja indígena, a autoridade responsável deve informá-la da possibilidade de autodeclaração e dos direitos decorrentes dessa condição. Caso a pessoa se declare indígena, é preciso questionar dados sobre etnia, idioma falado e grau de conhecimento da língua portuguesa. Depois, todo o processo deve ser notificado à Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão responsável pelas políticas de auxílio e de mediação dos diversos grupos indígenas do Brasil.

Durante todo o processo, deve haver o acompanhamento de um intérprete, caso o indígena não fale ou ou tenha dificuldade no domínio e na compreensão do português. Também deve ser determinada a realização de uma perícia antropológica por profissional da área de Ciências Sociais. 

Não sendo possível adotar práticas de resolução de conflitos e de responsabilização conforme os costumes e normas da própria comunidade indígena, o Estado deve aplicar penas adaptadas às condições e prazos compatíveis com a cultura, local de residência e tradições da pessoa indígena. Dependendo da situação, a pena deve ser cumprida em semiliberdade. 

Em último caso, o indígena é encaminhado a uma prisão estadual. Dentro do sistema penitenciário, é direito do indígena o acesso à assistência jurídica, educacional, material, de saúde, social e religiosa. Tudo isso deve ser prestado conforme as especificidades culturais de cada povo, como por exemplo o fornecimento de alimentação de acordo com os costumes, presença de pajés, líderes espirituais ou religiosos nas penitenciárias e o reconhecimento de laços de parentesco, segundo cada povo, no momento das visitas.

O Plural entrou em contato com a Funai, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.

*A fim de evitar retaliações e preservar a identidade dos indígenas, foram utilizados pseudônimos ao longo da reportagem.

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