Lava Jato buscou apoio de ex-juízes da Mãos Limpas, mas recebeu críticas

Deltan Dallagnol se aproximou de magistrados de operação italiana, mostram conversas obtidas pelo Plural

No auge da Lava Jato, o então procurador do Ministério Público Federal do Paraná, Deltan Dallagnol, buscou o apoio dos ex-magistrados da Mani Pulite (Mãos Limpas) – a operação italiana contra a corrupção que inspirou a versão brasileira – para que respaldassem as investigações, porém recebeu criticas.

É o que revelam conversas do ex-chefe da força-tarefa de Curitiba, obtidas pelo Plural. Essas mensagens foram trocadas entre Dallagnol e Maria Cristina Pinotti, economista do Centro de Debates de Políticas Públicas (CDPP), grupo de especialistas que ao longo dos anos analisou a corrupção no Brasil.

As conversas fazem parte de um grande arquivo registrando diversas conversas de Dallagnol. O arquivo tem a mesma fonte do material publicado pelo Intercept sob o nome de Vaza Jato – uma série de reportagens que mostrou os bastidores da investigação da Lava Jato.

Capítulos

Em 2017, Pinotti pediu a Dallagnol e ao procurador Roberson Pozzobon que escrevessem dois capítulos do livro “Corrupção: Mãos Limpas e Lava Jato”, obra que analisa os pontos em comum entre as duas operações de combate à corrupção. A economista pediu a colaboração também dos ex-procuradores da Mãos Limpas, Piercamillo Davigo e Gherardo Colombo.

No começo da década de 1990, os dois procuradores integravam a força-tarefa italiana e ganharam notoriedade midiática a ponto de se tornarem símbolos da operação, junto com o mais conhecido procurador Antonio Di Pietro. Os chats da Vaza Jato mostram que Dallagnol queria que Davigo e Colombo endossassem a Lava Jato de modo a “legitimar” a operação brasileira perante a opinião pública.

Mãos Limpas no Brasil

A tentativa de envolver os ex-juizes italianos na campanha de apoio à Lava Jato começou em abril de 2017, quando Dallagnol perguntou a Pinotti se Colombo e Davigo poderiam escrever algo sobre a corrupção no Brasil.

“Uirá [Machado] é editor da Ilustríssima, da Folha [de S. Paulo], suplemento semanal dedicado a análises em profundidade. Para fugir da cobertura tradicional, ele pensou num artigo escrito por alguém da Mãos Limpas. Acho a ideia legal, pode reforçar os riscos que corremos por aqui. Vc tem contato com algum dos juízes ou procuradores da Mãos Limpas?”, escreveu Dallagnol.

A economista, no entanto, decidiu não atender aos pedidos do procurador. Pelo menos de imediato. “Tenho certeza que os magistrados italianos [Davigo e Colombo] jamais escreverão algo sobre o Brasil. Isso cabe a nós. Continuo trabalhando sobre o assunto, falo com eles, sem problema.”

Após alguns meses de espera, porém, o assunto voltou à tona em ocasião da visita a São Paulo dos dois procuradores italianos que, em outubro de 2017, participaram de duas palestras sobre corrupção. Foi neste período que Pinotti planejou a publicação do livro com os artigos de Colombo, Davigo e dos procuradores da Lava Jato.

Para Dallagnol e Pozzobon, a surpresa foi grande quando os italianos enviaram os primeiros rascunhos dos artigos.

“Confesso que fiquei preocupado com essa visão dada por Colombo […] Vc acha que seria o caso de pedirmos que ela nos envie o artigo dele para darmos uma olhada?”, perguntou Pozzobon a Dallagnol, em um dos diálogos vazados do dia 19 junho 2018.

Apesar de ter sido integrante da força-tarefa italiana, o ex-juiz Colombo, nos últimos anos, passou a ter uma postura crítica sobre o legado deixado pela Mãos Limpas.

O então chefe da Lava Jato em Curitiba respondeu ao colega. “Acho que vale pedir pra dar uma olhada sim, até pra influenciar no tom do nosso… não podemos rebater pq faltaria contraditório, mas podemos falar do mesmo por outra ótica”, disse Dallagnol.

As críticas da Mãos Limpas à Lava Jato

Em seu artigo para o livro, o ex-procurador italiano Colombo critica o sistema judiciário brasileiro, que dá a uma mesma pessoa dois papéis, o de juiz que comanda a investigação e o de juiz de primeira instância, que profere as sentenças. Esse foi o papel que o então juiz Sergio Moro desempenhou ao longo da operação Lava Jato.

“Permitir que o responsável pela investigação emita uma sentença de condenação coloca em grande risco não apenas em termos formais, mas também substancialmente, a imparcialidade, por óbvias razões, que não se limitam ao caráter psicológico. (…) Há o risco de que alguém que tenha feito parte das investigações se enamore da sua própria atividade e das suas próprias teses e seja levado a sustentá-las mesmo se forem erradas”, escreveu Colombo.

O magistrado da Mãos Limpas frisou que a Justiça não tem credibilidade “se não houver garantia de que o juiz seja mesmo independente e por consequência imparcial”. Ter uma visão parcial significa trair a própria natureza da função judiciária”, concluiu o ex-juiz italiano.

As dúvidas sobre a possibilidade de que o texto de Colombo pudesse enfraquecer a imagem da Lava Jato caíram por terra quando Dallagnol leu o capítulo de Davigo, colega de Colombo na Mãos Limpas, mas com uma visão mais alinhada à da Lava Jato.

“Há uma unidade muito bacana entre os textos de vcs, Moro e meu, e qto ao Colombo, parte ele se destruiu sozinho e parte nós acabamos com as bobagens dele. Ou seja, acho um belo livro (…) Nunca diga isso a ele (ou seja Davigo), ele jamais me perdoaria!!!!! Adoro o texto dele, ele sozinho dá conta do Colombo”, escreveu Pinotti, em outubro de 2018, em uma mensagem enviada a Dallagnol.

1° Outubro de 2018

19:53:44 – Maria Cristina Pinotti: Há uma unidade muito bacana entre os textos de vcs, Moro e meu, e qto ao Colombo, parte ele se destruiu sozinho e parte nós acabamos com as bobagens dele. Ou seja, acho um belo livro!!! E que vou fazer o possível para vê-lo traduzido tbm!!! Bjs
20:00:26 – Deltan: rsrsrs
20:00:34 Deltan: E Davigo?
21:32:06 Maria Cristina Pinotti: Noooossa!!!! Nunca diga isso a ele, ele jamais me perdoaria!!!!! Adoro o texto dele, ele sozinho dá conta do Colombo. Lapso meu, inexplicável!!!!
21:49:52 Deltan: kkkkk
21:50:05 Deltan: se fosse só Colombo, ia vigorar a voz dele
21:50:10 Deltan: Com Davigo, fica top

Crítica a Moro

Em 1° de novembro de 2018, dia em que Sergio Moro aceitou o convite de Jair Bolsonaro para assumir o cargo de ministro da Justiça, Dallagnol perguntou a Pinotti o que achava da decisão do ex-juiz de ingressar na política.

“Ele [Sergio Moro] e a LJ [Lava Jato] tem excelente imagem no exterior, criando ‘bom contágio’ […] Nada semelhante ao Di Pietro [Antonio, ex-magistrado da Mãos Limpas que também abandonou a toga para virar político], que era um bufão, pouco instruído, tosco, que saiu do MP [Ministério Público] por medo dos dossiês contra ele. Só não comparo o Moro com o Falcone [Giovanni, ex-magistrado siciliano assassinado pela máfia em 1992] por desejar que ele tenha uma vida longa!”.

Na semana seguinte, após o UOL publicar o artigo em que Colombo criticou a ida de Moro ao Ministério da Justiça, Pinotti enviou a Dallagnol um texto para defender o ex-juiz da Lava Jato. “Só saiu na versão on-line do jornal, mas era a propósito da entrevista do Colombo. Estou pelas tampas com esse Colombo”.

A posição de Colombo foi considerada tão incompatível com a visão da Lava Jato que a própria Pinotti confidenciou a Dallagnol que não o convidaria para a apresentação do livro no Brasil:

“Além disso, estou falando com o Estadão para ver se organizamos um seminário com os autores nacionais (nada de italianos dessa vez, ppalmente o Colombo que nao convido nunca mais) para lançar o livro”.

Antes das eleições?

Ao longo de 2018, os contatos entre Dallagnol e Pinotti se intensificaram, pois a economista queria que os procuradores da Lava Jato terminassem de escrever os capítulos do livro para que, finalmente, começasse a fase de edição.

As eleições presidenciais de outubro se aproximavam e havia um interesse da Lava Jato de que o livro fosse publicado antes do pleito, como demonstram as conversas.

Em julho, Dallagnol perguntou a Pinotti qual seria “a probabilidade de o livro sair antes das eleições”. Contudo, segundo a economista, a possibilidade era “quase nula”. “Ninguém bacana aceitou o livro sem ler”, explicou Pinotti.

“E qual a chance de circularmos o capítulo antes de publicar? Estou pensando em como aproveitar para o que mais está clamando atenção agora [eleições]”, indagou novamente Dallagnol.

Apesar das tentativas de surfar na onda das eleições, em que a pauta do combate à corrupção teve um peso relevante, o livro acabou sendo publicado apenas em fevereiro de 2019, quando Bolsonaro já havia assumido a Presidência.

Amizade entre Dallagnol e Moro?

A relação entre Dallagnol e Moro, ou seja, entre acusador e julgador, foi motivo também de questionamentos sobre a imparcialidade da atuação do ex-juiz que, como revelado em 2019 pelo The Intercept Brasil, mantinha conversas particulares com o procurador sobre investigações e processos.

Na série de reportagens da chamada ‘Vaza Jato’, o site mostrou uma relação esdrúxula entre os dois. “Moro sugeriu ao procurador que trocasse a ordem de fases da Lava Jato, cobrou agilidade em novas operações, deu conselhos estratégicos e pistas informais de investigação, antecipou ao menos uma decisão, criticou e sugeriu recursos ao Ministério Público e deu broncas em Dallagnol como se ele fosse um superior hierárquico dos procuradores e da Polícia Federal.”

Uma troca de mensagens ocorrida em novembro de 2018 entre Dallagnol e Pinotti parece confirmar que havia laços de amizade entre o então procurador e o juiz. Na conversa, Deltan sugeriu que Pinotti fizesse uma alteração no post scriptum do livro, que ela havia adicionado para explicar a saída de Sergio Moro da magistratura.

Dallagnol temia que falar em “fortes laços de amizade entre nós e ele [Moro] pode levantar a bola pra críticas por suspeição”, escreveu o procurador.

De fato, a suspeição de Moro (isto é, quando a imparcialidade do juiz é questionada) foi julgada pela 2ª Turma do STF, em março de 2021.

Segundo os ministros Gilmar e Ricardo Lewandowski, o então juiz agiu com parcialidade enquanto esteve à frente da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba ao interferir na produção de provas contra os acusados, dirigir as investigações do MPF e juntar documentos de ofício, sem manifestação do órgão.

14 novembro 2018
5:20 Maria Cristina Pinotti: APRESENTAÇÃO Maria Cristina Pinotti ………………… Os fortes laços de amizade, respeito e admiração consolidados ao longo dos anos entre todos os autores dos cinco capítulos tornaram a sua elaboração uma fonte de enorme prazer. Esperamos que seja útil e contribua para a discussão de como construir um país mais justo, próspero e íntegro.
21:05:11 Deltan: Acho que colocar fortes laços de AMIZADE entre nós e ele pode levantar a bola pra críticas por suspeição. Se em tempo, e apenas nesse caso, seria bom colocar só respeito e admiração. Pode trocar tb por consideração rs. Mas só se em tempo. Digo isso pq juiz e promotor do caso não podem ser amigos íntimos – e por isso sempre mantivermos alguma reserva.
21:05:33 Deltan: Mas se for assim como está, tá excelente tb

A versão dos ex-magistrados da Mãos Limpas

Questionados pelo Plural, os ex-juízes de Mãos Limpas negaram ter sido convidados a escrever um artigo sobre a operação Lava Jato, mas ambos apontaram que há grandes diferenças entre as investigações italianas e brasileiras.

“O debate (que aconteceu em São Paulo em outubro de 2017) teria destacado o fato de que a Lava Jato era, do ponto de vista deles, parente de Mani Pulite. O que escrevi no livro, distancia-se um pouco dessa visão. Neste artigo destaquei as diferenças entre a operação Mãos Limpas e a Lava Jato, pois o que aconteceu no Brasil sob uma série de perfis não poderia ter acontecido na Itália. Aqui, o juiz que conduz as investigações não pode condenar os investigados”, explica Gherardo Colombo.

Piercamillo Davigo também afirmou que ninguém lhe pediu escrever um artigo sobre a Lava Jato: “Não sei quase nada sobre o Brasil, então no livro falei sobre a Mani Pulite. Quanto ao debate, ninguém me disse que estávamos perseguindo um determinado propósito específico. Imaginei que teria sido uma comparação entre as operações, assim como acontece com outros países. O que sempre falei é que, por conta desse tipo particular de investigações, era fundamental ficar longe da política, uma coisa que não aconteceu no Brasil porque Sergio Moro tornou-se Ministro da Justiça”.

Outro lado: os procuradores da Lava Jato

Procurado pelo Plural, Deltan Dallagnol decidiu se expressou por meio de uma nota da sua assessoria de imprensa. “Deltan Dallagnol não reconhece a autenticidade das supostas mensagens que teriam sido obtidas de forma criminosa. Esse tipo de material sempre foi usado por pessoas condenadas pela Lava Jato para atacar a operação e seus integrantes, uma vez que não conseguem contestar as provas que motivaram as condenações. O candidato repudia o uso de conteúdos sem autenticidade aferida para criar especulações na semana nas eleições”.

Procurado por meio da assessoria de imprensa do MPF, Roberson Pozzobon não comentou o conteúdo da reportagem.

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2 comentários em “Lava Jato buscou apoio de ex-juízes da Mãos Limpas, mas recebeu críticas”

  1. Luiz Alberto Bonin

    Certamente estarão, o ex-juiz parcial e o ex-procurador igualmente tendencioso, na lata de lixo da História na maior parte do Brasil e do mundo democrático. Somente alguns desonestos intelectualmente, com princípios relativos conforme a conveniência ainda os admiram. Ou então os claramente autoritários e que flertam com o fascismo.

  2. Usaram a justiça como trampolim político. Foram expostos , mas a condenação de parcialidade veio das ações da defesa, ganharam força quando o hacker expôs. Deve uma ação do então juiz que foi grampear o advogados de defesa. Enfim uma vergonha um dos escândalos de corrupção da justiça brasileira.

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