Cabelo de “bombril” no espaço escolar? É racismo!

Profissionais da educação usaram esponja de aço para representar o cabelo crespo

Estamos nos encaminhando para o final do ano letivo e neste período as escolas, geralmente, realizam mostras de trabalhos resultado da prática pedagógica realizada no decorrer do ano. Um dos temas previstos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação 9394/96 é o ensino da história, cultura africana e afro-brasileira e indígena. Como diz a lei, é fundamental que esses temas estejam inseridos nos componentes curriculares e abordados cotidianamente. Assim, uma prática pedagógica coerente com a legislação promove uma educação para a equidade e o respeito mútuo questionando preconceitos que levem a discriminações raciais, ou seja, a prática do racismo. Entretanto, quais propostas são realizadas sob o argumento do cumprimento das leis antirracistas nas escolas? Elas estão cumprindo de fato o que preveem as normativas legais?

Infelizmente, não há apenas boas práticas neste contexto e embora saibamos que existem excelentes experiências vamos abordar nesse texto algumas que são racistas, mas ainda estão presentes no ambiente escolar. Especialmente no mês de novembro, quando se comemora o Dia da Consciência Negra – data prevista na LDB, ocorrem atividades que atuam de modo contrário a valorização da história e cultura afro-brasileira. Neste mês, o grupo de estudos para a educação das relações étnico-raciais ErêYá da Universidade Federal do Paraná recebeu duas denúncias: uma de Curitiba e outra de Almirante Tamandaré, ambas cidades do estado do Paraná, de um mesmo tipo de atividade. Profissionais da educação que supostamente estavam realizando atividades no contexto do 20 de novembro para valorizar a imagem da mulher negra usam esponja de aço para representar o cabelo crespo.

Não é novidade que o cabelo crespo é uma das principais marcas de identidade negra e por isso tem sido ao longo da existência negra taxado como “cabelo ruim”. O movimento negro (incluídos aqui pesquisadoras/es) gasta muita energia para ressignificar esta percepção e fazer com que crianças se olhem no espelho e gostem dos seus cabelos rompendo com a ideia de ruim. Uma das formas de desumanização da pessoa negra é relacionada a coisas abjetas, ruins e esponja de aço comumente chamadas de “bombril” são usadas para limpeza, ou seja, os cabelos crespos além de ruins seriam sujos? Ao usarem este material para representar cabelos crespos é exatamente essa a imagem criada no imaginário das pessoas, especialmente das crianças. Pedimos licença para postar essa imagem sem dar os créditos, mas foi postada em uma página de Facebook de uma das escolas de onde vieram as denúncias. Como se pode ver na imagem.

Fonte: imagem publicada por uma pessoa denunciando o fato ocorrido em Almirante Tamandaré

O ErêYá fez carta-denúncias às secretarias responsáveis, a primeira reconheceu a necessidade de investir mais em formação de professores/as. A segunda tomou atitudes de punição da direção, coordenação e professora, mas será que ofertou formação sobre o tema? Uma pergunta se impõe: Como se sentiram as crianças que possuem cabelos crespos ao visualizarem tal exposição? E as crianças que manusearam tal material de trabalho? Qual o impacto dessa atividade para as crianças brancas presentes nessa instituição? O que leva alguém a pensar que tal trabalho contribui com a autoestima dessas crianças/estudantes? E os/as demais profissionais da unidade que são negros/as, como se sentiram?

Este tipo de atividade não contribui com a Educação para as Relações Étnico-Raciais conforme orientado pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2004). No texto que têm força de Lei está explícito no seu Art. 5º “Os sistemas de ensino tomarão providências no sentido de garantir o direito de alunos afrodescendentes de frequentarem estabelecimentos de ensino de qualidade, que contenham instalações e equipamentos sólidos e atualizados, em cursos ministrados por professores competentes no domínio de conteúdos de ensino e comprometidos com a educação de negros e não negros, sendo capazes de corrigir posturas, atitudes, palavras que impliquem desrespeito e discriminação”. Nem precisamos explicar que comparar cabelo crespo a esponja de aço fere esse artigo.

Precisamos nos perguntar: Como dimensionar o dano psíquico produzido por uma atividade como essa? Não são poucos os relatos de mulheres negras sobre dores produzidas a partir do racismo que aparece em relação a seus cabelos crespos. Valéria Pereira da Silva na dissertação de mestrado “Professoras negras em Curitiba – PR e suas narrativas sobre educação das relações étnico-raciais no ensino fundamental” defendida em 2022 apresenta suas memórias sobre esse fato e Genice de Fátima Fortunato da Silva Fiaschi, na pesquisa “Narrativas de uma professora negra sobre a educação antirracista e as pedagogias do teatro na educação básica” (2022) também da conta do impacto da desvalorização do cabelo e cor de pele para constituição positiva das crianças negras.

É importante perguntar: quem realizou o trabalho participou de formações continuadas relacionadas à Educação para as Relações Étnico-Raciais, conforme previsto na legislação organizadas pelos sistemas municipais? Quantas formações aconteceram? Quais temas foram abordados? E os demais profissionais da unidade ao presenciar tal atividade de cunho racista o que fizeram? E se nada fizeram quais os motivos para esse silêncio?

Lamentavelmente nos deparamos com o racismo no espaço escolar e com a omissão dos sistemas educacionais em prover formação continuada que aborde o tema e prepare seus e suas profissionais. O preconceito e a discriminação racial presentes nesse tipo de trabalho é violenta para pessoas negras e reflete a cultura racista vigente em vários setores da sociedade e nas instituições de ensino, justamente aquelas que têm por dever legal proteger todas a infâncias, inclusive as negras de qualquer discriminação.

Atividades com esse viés que inferioriza o cabelo crespo produzem situações de rejeição ao próprio cabelo, algo que afeta crianças, adolescentes e adultos. Relatos de pessoas que passaram pela transição capilar, processo de retorno aos fios naturais após alisar seus cabelos por anos, revelam que para além das dores emocionais, tiveram também feridas físicas provocadas por queimaduras advindas dos produtos utilizados nesses recorrentes alisamentos. É óbvio que cada um tem a liberdade de escolher usar o cabelo da maneira que preferir, entretanto essa preferência não deve vir por imposições negativas acerca do tipo de cabelo.

Diante dos fatos reiteramos que é preciso que os sistemas educacionais assumam o compromisso de cumprir as normativas legais e ofertem formações continuadas e mediações relacionadas ao trabalho com a Educação para as Relações Étnico-Raciais, com pessoas que tenham condições de acompanhar e gerar reflexões e debates sobre a temática. Os sistemas educacionais precisam responder ao Ministério Público e a sociedade: Quantas formações são realizadas durante o ano letivo? Quantos profissionais participam efetivamente? Quantas pessoas compõem a equipe de formação e mediação do trabalho relacionada à Educação para as Relações Étnico-Raciais nas unidades? O que pensa sobre esse assunto a Secretaria de Educação? Como pretende atuar diante dessas situações?

São muitas perguntas e uma resposta URGENTE: formação dos profissionais da educação e o combate ao racismo nas práticas pedagógicas é imprescindível.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “Cabelo de “bombril” no espaço escolar? É racismo!”

  1. Discussão importantíssima. Está na hora de ações efetivas para que o que está escrito na lei vire palavra-viva e se reflita em ações conscientes e proativas na efetiva e correta implementação da lei. Capacitar os professores e outros profissionais da educação, contabilizar as ações, seus tipos e sua eficácia ou não (e discutir como melhorá-las) é uma maneira de incentivar as instituições e a sociedade civil a priorizar essa inplementação.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima