Loteria criada por Ratinho Jr. é cercada por dúvidas e denúncias de irregularidades

Tribunal de Contas mostra problemas na licitação, que teve apenas uma empresa inscrita; mecanismo que permitiu contrato mais longo seria ilegal, segundo auditoria

Uma auditoria do Tribunal de Contas do Paraná (TC) apontou uma série de irregularidades no processo de licitação aberto para selecionar a empresa responsável pela implementação e operacionalização do sistema de controle das atividades da loteria paranaense, a Lottopar. Entre a publicação do edital e a homologação do consórcio vencedor foram menos de dois meses, em um processo que evoluiu em regime de urgência nos corredores do Palácio Iguaçu.

O relatório de fiscalização da 4ª Inspetoria de Controle Externo da Corte de Contas, ao qual o Plural teve acesso, sustenta que a maioria das falhas encontradas no edital são de “natureza grave” e que, da forma como foram redigidas, as regras restringiriam “ilegalmente a competitividade do certame”. A licitação, de fato, teve apenas uma empresa participante. O governo do Paraná negou qualquer desvio.

Mas por avaliar que os esclarecimentos prestados o em resposta aos questionamentos não foram suficientes, a equipe do Tribunal de Contas propôs representação com medida cautelar para suspender o edital, que também foi alvo de pelo menos duas impugnações no decorrer do processo por alegadas irregularidades capazes de limitar a competitividade e a transparência.

A liminar foi negada pelo relator, o conselheiro Maurício Requião de Mello e Silva, mas o mérito, que vai avaliar se as inconsistências relatadas são mesmo pertinentes, ainda não foi julgado. Em caso de deferimento, o contrato derivado do certame que deu à Pay Brokers Paraná o direito pela prestação dos serviços pode ser suspenso.

Sócio nomeado no governo

A Pay Brokers EFX Facilitadora de Pagamentos S.A foi a única empresa a participar do pregão eletrônico realizado em 10 de março e teve um dos sócios lotados na Secretaria da Administração e da Previdência (Seap) quando a viabilidade da loteria estadual começou a ser discutida. A Seap foi a responsável por formalizar o conteúdo do edital a partir das definições repassadas pelo órgão solicitante, neste caso, a Lottopar, incialmente chamada de Lotepar, autarquia da própria pasta.

A empresa é fornecedora de soluções de pagamento para o setor de jogos e apostas e já foi convocada para prestar depoimento em condição de testemunha na CPI da Câmara Federal que investiga manipulação de resultado em partidas de futebol; mas, recentemente, a Comissão expediu contra ela requerimento pedindo quebra de sigilo bancário das movimentações financeiras.

Uma vence, várias levam

Apesar de a Pay Brokers EFX ter sido a única a apresentar proposta no certame, o contrato foi assinado em nome de consórcio de CNPJ distinto, formado ainda por outras duas empresas não participantes da sessão de concorrência. Juntos, sócios do consórcio vencedor doaram à campanha eleitoral de Ratinho Jr. e do PSD no Paraná, partido do governador, R$ 260 mil, mostram dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Além de fornecer a plataforma de controle de atividades de todas as modalidades da Lottopar, integrada com meios de pagamentos, o grupo também irá gerenciar, regular e controlar o fluxo financeiro dos operadores lotéricos.

A alegação do governo é de que a contratação de múltiplos sistemas para atender a cada objeto individualmente, “além de segregar os dados dos usuários geraria altos custos ao Estado, impossibilitando ou dificultando a integração de sistemas”. Segundo estimativas da Seap, a loteria estadual, ressuscitada no ano passado, deve chegar a um faturamento anual de R$ 232 milhões e render aproximadamente R$ 8,35 milhões por ano ao consórcio selecionado, diante de um custo de contratação de R$ 167 milhões ao longo da duração do contrato. No entanto, para a auditoria do Tribunal de Contas, os estudos sobre o mercado potencial do setor no estado e, consequentemente, as projeções de receita, têm grandes lacunas que podem favorecer a vencedora e causar prejuízos ao Estado.

Possíveis irregularidades

Os achados do TC foram detalhados em um documento de mais de 80 páginas. A auditoria identificou no edital deficiências na fase interna da licitação, inconsistências na matriz de alocação de riscos, ilegalidade na duração contratual estabelecida – o prazo de atuação do consórcio vencedor será de 20 anos –, além de mecanismos de restrição à competitividade supostamente forçados por requisitos considerados pela equipe bastante específicos e limitadores.

Entre eles o fato de, cumulativamente a outros requisitos, potenciais participantes terem sido obrigadas a comprovar operação de sistemas em mercados regulados de loterias por no mínimo um ano, apesar de a quebra de monopólio para exploração de loterias ser algo recente no país.

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) contra a exploração de modalidades lotéricas como exclusividade da União foi proferida somente em setembro de 2020, o que levou a inspetoria do Tribunal de Contas a avaliar de que se trata de um “mercado basicamente em nascimento no Brasil” e, consequentemente, com poucas empresas do setor detentoras da experiência então requerida pela Seap. No documento, os agentes dizem que o conjunto das condições determinadas sugere que o Paraná “aparenta ter criado um novo nicho de mercado”, sendo “bastante provável que não exista competitividade”.

Provas em dez dias

A especificidade e o prazo relativamente curto estabelecidos para a segunda etapa do certame, a chamada prova de conceito (PoC), também foram questionados. Para comprovar a adequação do objeto oferecido em relação às especificidades do edital, o governo definiu como obrigatória a apresentação de 100 das 110 funcionalidades listadas em um prazo de apenas dez dias. A leitura da auditoria foi da possibilidade de a administração ter pleiteado um produto já apto a funcionar e não uma amostra, como deveria ser, dando mais limitação à competitividade.

O entendimento foi agravado pelo fato de o objeto ter sido considerado bastante complexo pelos inspetores, muito embora o governo tenha defendido se tratar de solução formada pela união de sistemas de prateleira, facilmente encontrados no mercado brasileiro – justificativa não considerada plausível pela equipe da corte. “Nessas condições, inviável exigir que o software esteja a apto a funcionar com exigências especificas da LOTEPAR em 10 (dez) dias. Nessa situação, apenas aquela empresa que já detém o software pronto com especificações muito próximas as do Edital conseguira atender a licitação, e o fato de determinada empresa ter software com especificações muito próximas as do edital provavelmente ocorrera por uma das seguintes hipóteses: sorte ou direcionamento licitatório”, avaliaram os agentes.

De acordo com o relatório, não foram encontrados problemas pontuais, mas “generalizados” na condução do certame.

Na fase interna da licitação, a equipe afirmou que a Seap e a Lottopar não estimaram os custos de operação do sistema, ou seja, o quanto a empresa realmente desembolsaria para desenvolver, customizar e manter a plataforma e também para entregar as demais atividades previstas no edital.

A falha estaria em uma suposta desconformidade na execução da pesquisa de preços em relação ao que prevê acórdão da própria Corte e a nova lei de licitações, sob a qual o edital está amparado. A legislação exige compatibilidade entre o valor previamente estimado da contratação com os valores praticados pelo mercado, sendo obrigatória, no caso de licitação de serviços, pesquisa direta com no mínimo três fornecedores. Foram anexados ao processo administrativo do certame pedidos de cotação enviados para três empresas diferentes em novembro de 2021, resultando em apenas uma cotação completa – a da Pay Brokers. As outras duas consultadas esboçaram valores sob a observação de que não atendiam por completo ao rol de exigências da Lottopar.

Assim, para a auditoria, não houve cotação real dos preços do mercado, sendo considerado que “sem esses dados, a mera estimativa com três orçamentos é temerária e tem grande potencial de gerar uma contratação superfaturada e antieconômica à administração”.

Adequações também foram direcionadas ao impacto do que os inspetores definiram como insuficiência e incompletude no estudo de estimativas do tamanho potencial do mercado. Isso porque o estudo prévio que serviu de base para estimar o mercado potencial de apostas no Paraná – diretamente relacionado à estimativa da remuneração que será paga ao contratado – não contemplou todas as seis modalidades lotéricas previstas para serem operadas, mas apenas as apostas esportivas de quota fixa online. Assim, em caso de mercado mais amplo, “o potencial de arrecadação da exploração do serviço de loteria no Paraná tende a ser muito maior, o que beneficiaria a futura contratada”, afirma o documento.

A licitação do sistema gerencial mesmo antes de finalizado o estudo da concessão de loterias – ou seja, ainda sem a definição do que será verdadeiramente gerenciado – também foi indagado pela equipe, que também viu irregularidades no pagamento pela garantia de recebimento dos códigos-fonte da plataforma ao fim do contrato. A opção, em detrimento a outras possibilidades de transição, poderia levar a “um aprisionamento tecnológico da loteria em relação ao sistema e a empresa que o desenvolveu”.

Manobra jurídica

A duração contratual prevista no edital foi um dos pontos mais interrogados pela equipe do TC. Isso porque, no modelo desenhado pela Lottopar, a exploração das modalidades lotéricas vai gerar receita para o estado mediante contrapartida financeira que será paga pela contratada; ou seja, o dinheiro não virá das operações, mas de um percentual aplicado sobre a base de lucros da vencedora do certame (ao final, definido em 18%) – classificada pelos agentes como uma “receita fictícia” para burlar a Lei de Licitações e ampliar o prazo de vigência do acordo.

O esquema abre brecha para entendimentos diversos sobre o que determina a lei, conforme própria Procuradoria-Geral do estado (PGE) chegou a manifestar ao analisar os aspectos jurídicos do edital. Via de regra, a legislação permite à administração celebrar contratos de até cinco anos nas hipóteses de serviços e fornecimentos contínuos, mas dá aval para que o prazo suba para até 35 anos em acordos com benfeitorias ou receitas revertidas ao patrimônio público.

Ao considerar o contrato como gerador da própria receita, o governo se permitiu estabelecer o prazo de vigência do contrato em vinte anos, o que, para o TC, não foi correto.

O argumento dos inspetores é de que o contrato com a empresa fornecedora da plataforma não poderia ser enquadrado como gerador de receita porque a vantagem financeira do estado virá, verdadeiramente, das futuras concessões das loterias. “Neste exato momento, a Lotepar acabou de criar uma receita fictícia para esta contratação, na medida em que o originário e verdadeiro contrato que, de fato, gerará receita para todo o sistema será o da futura concessão/credenciamento para exploração das atividades lotéricas estaduais”, dizem.

Avaliação jurídica da PGE também chegou a questionar a figura de contrato gerador de receita adotado pela autarquia. Assinado pelo procurador Vinicius Klein, o parecer sugeriu que houvesse “justificação adequada” do prazo proposto, antecipando que, “no caso em análise, o contrato não gera necessariamente receita, o que gera receita é a atividade de loterias, cuja plataforma tecnológica é instrumental e necessária para a realização”.

Em resposta à Procuradoria, o governo sustentou que a previsão de investimentos elevados e atualizações constantes para manter a plataforma em adequada operação demandariam tempo mais longo de amortização, além da necessidade de adequar o prazo dos serviços do sistema ao da concessão de operação, que também será de 20 anos, “sob pena de se ter situações frequentes de transição e colocar em risco o efetivo e contínuo controle das atividades. Com a duração contratual mantida, a PGE, em avaliação final, reiterou o alerta para “riscos de questionamento do prazo”.

Para o Tribunal de Contas, a interpretação “transfigurada” da Lottopar neste caso poderia “causar grandes riscos ao setor público”, abrindo precedentes para que vários serviços considerados rotineiros passem a ser classificados como gerador de receita e ter prazos ampliados, acrescentando que, uma vez também tendo sido considerado insuficiente o estudo de estimativas do tamanho potencial do mercado, a interpretação poderia ter outras consequências: caso a estimativa esteja superavaliada, o contratado será prejudicado; se subavaliado, “a plataforma acumulará lucros exorbitantes e o Estado terá feito um péssimo negócio”, pois os recursos, se melhores administrados, “iriam ser transferidos em grau maior para o tesouro estadual, ao invés de inflar os ganhos da contratada”, agora já definida como sendo a Pay Brokers Paraná.

Os donos do negócio

Autorizado a iniciar a prestação de serviços em 19 de abril deste ano, o consórcio é administrado por Edson Antonio Lenzi Filho, advogado de Curitiba que atua em diferentes negócios no setor de gaming, e constituído por três empresas.

Além da Pay Brokers EFX, cujos donos são Lenzi e Thiago Heitor Presser, também compõem o quadro a Skilrock Technologies Brasil e Pay Brokers IP Instituição de Pagamento. Conforme dados da Receita Federal e da Controladoria Geral da União, a primeira está vinculada a uma empresa indiana – a Skilrock Technologies Private Limited – e a Alexandre Tauszig, da área de desenvolvimento de negócios da Pay Brokers. Já na Pay Brokers IP aparecem como sócios Lenzi, Presser e Henrique de Oliveira Moreira – que teve cargo comissionado na Seap.

A nomeação de Moreira foi assinada pelo então secretário da pasta Marcel Micheletto em setembro de 2020, mesmo mês em que o STF decidiu dar aos estados o direito de explorar modalidades lotéricas.

O primeiro passo formal do governo do Paraná para discutir a viabilidade de implantação da loteria estadual ocorreu com criação de um Grupo de Trabalho para discutir o tema, formalizado em 17 de fevereiro de 2021, quando o sócio da Pay Brokers IP – aberta oficialmente em 11 de fevereiro de 2021 – ainda estava na pasta. Moreira foi exonerado da Seap em 29 de novembro daquele ano, duas semanas antes de a Assembleia Legislativa (Alep) aprovar lei que instituiu a Lottopar, cujo edital só começou a ser discutido de maneira oficial em agosto de 2022.

Procurado, o Consórcio Pay Brokers rechaçou qualquer envolvimento de Henrique Oliveira Moreira nas discussões sobre a Lottopar.

Segundo a empresa, além de ele não ter exercido funções nem ter tido relações com o Departamento de Licitações da Seap ou com qualquer órgão envolvido na elaboração dos documentos do Pregão Eletrônico nº 2306/2023, “a Loteria do Estado do Paraná estava vinculada à Secretaria da Fazenda até setembro de 2022, quando foi atribuída para a SEAP pela Lei nº 21.231/2022”, disse, em nota.

Apesar da realocação de pastas, a condução do primeiro GT de tratativas sobre a loteria estadual foi compartilhada entre Seap e Sefa, mostram documentos aos quais a reportagem teve acesso – o que indica, em um primeiro momento, decisões conjuntas entre os órgãos.

No contato com o Consórcio, o Plural deixou espaço para que Moreira se manifestasse individualmente, caso assim fosse considerado necessário.

Resposta

Sobre os questionamentos da 4ª Inspetoria de Controle Externo do Tribunal de Contas em relação ao edital – muito embora eles não tenham relação, de fato, com a empresa vencedora –, a Pay Brokers Paraná ressaltou que “o conselheiro responsável pelo julgamento rejeitou a existência de irregularidades, sendo esta decisão a que prevalece até o presente momento” e que, no âmbito do processo, “não há nenhum questionamento envolvendo condutas dos participantes do Consórcio PayBrokers”.

“De igual modo, concorrentes entraram com ação judicial, igualmente rejeitadas pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, decisão sobre as quais os próprios autores formalizaram pedido de desistência. Assim, não temos conhecimento de outras discussões acerca do tema. Portanto, o Consórcio PayBrokers desconhece qualquer irregularidade no Pregão Eletrônico nº 2306/2022 e reitera que nunca foram feitos questionamentos sobre atos praticados por ele ou seus participantes”, afirmou o consórcio.

Em relação às doações sócios à campanha de Ratinho Jr. no ano passado, elas foram feitas, destaca a Pay Brokers, “de forma regular, no âmbito estrito do exercício do direito individual dos sócios da integrante do Consórcio”.

O governo do Paraná também se opôs aos apontamentos da inspetoria do TC.

“A Lottopar (Loterias do Estado do Paraná) esclarece que atendeu e respondeu ao relatório do Tribunal de Contas do Estado e sanou as dúvidas apontadas. Não foram encontradas irregularidades no processo ou nos documentos entregues pelo consórcio vencedor”, disse, também por meio de nota.

Sobre a passagem do sócio da Pay Brokers pelo governo, a Seap disse que “servidor citado na reportagem foi exonerado em 2021, e nunca atuou na Lottopar, responsável pelo edital em questão, ou no setor de contratações públicas do estado”.

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