Relação de Miranda com personagem não binária faz valer o tempo gasto com a série “And Just Like That”

Casal que não se conforma com as injustiças do mundo é o ponto alto da série que termina nesta quinta-feira (3)

O retorno da série “Sex and the City”, batizada de “And Just Like That”, exibe seu último episódio nesta quinta-feira (3) no Brasil. O programa, produzido pela HBO, é uma retomada da popular série do fim dos anos 90 que tem como protagonista a colunista de sexo, Carrie Bradshaw. Nos nove episódios exibidos até agora, há uma tragédia e uma surpresa, e não é a morte de Big, o grande amor de Bradshaw durante toda as seis temporadas e sim a forma como ela e o pressuposto do programa envelheceram muito mal.

Mas antes de chegar nisso é preciso dizer que a série surpreende investindo na sua melhor personagem, a advogada Miranda Hobbes. Das quatro amigas, Hobbes sempre foi a mais interessante, sempre se reinventando e se desafiando. Ela foi da solteira carreirista à mãe solteira e depois alegremente casada e morando fora de Manhattan.

Em “And Just Like That” encontramos Miranda numa nova onda. Ela largou o escritório de advocacia no qual era sócia para voltar para universidade e advogar para causas sociais. Não é surpreendente que ela acabe encontrando uma parceira em outra personagem interessante: Che Diaz, comediante não binária que é colega de Carrie num bizarro podcast sobre sexo e gênero.

A relação de Che com Miranda é a história mais interessante da nova série, que começa com Charlotte no seu usual papel de mãe perfeita e Carrie sofrendo por Big (pelo menos dessa vez é a última, já que ele morre). As duas parecem completamente alheias à realidade pós-pandemia, crise mundial e seguem na rotina já extremamente exposta nas seis temporadas e dois filmes da franquia: a moça perfeitinha casamenteira e a tola especialista em sexo (muito embora qualquer um que tenha visto a série sabe que o tema dela é mais relacionamentos do que sexo) cuja razão da vida é sofrer por um homem igualmente egoísta e alheio ao mundo em torno dele.

Nem mesmo a transição da filha Rose para Rock tira de Charlotte o papel de alienada, tola cuja principal preocupação é impressionar a mãe alfa do grupo de mães da escola. Claro, a mãe em questão é negra, lidera uma família negra milionária e é casada com um possível candidato a prefeito negro. Mas não é que Charlotte de repente seja uma militante de igualdade racial. Ela só quer viver o glamour desse casal em especial.

Já Carrie ganha uma nova amiga (talvez para substituir Samantha, que foi banida para Londres uma vez que a atriz não topou receber menos que as colegas), Seema Patel que dá um chega pra lá merecido na personagem depois que ela tem um chilique por causa de um porta-retrato quebrado. Patel, como é de se esperar, é mais gente e real que a amiga e abrilhanta bastante a trama.

Isso é bem diferente com Che e Miranda. As duas estão claramente incomodadas com o mundo e suas injustiças e vivem a relação de tentar provocar mudança enquanto lidam com as próprias dificuldades pessoais. É por isso que Miranda, que se sente presa num casamento sem sexo e no papel da mãe que precisa estabelecer algum controle sobre a vida descontrolada do filho que faz da casa dela um motel, acaba nos braços de Che desde o minuto que ouve-os (os pronomes de Che, a gente descobre logo de início, são eles e elas) falar sobre não se conformar e mudar.

Mas sendo a série uma continuação de “Sex and the City”, ela é também um amontoado de clichês sobre ser mulher, sexo e relacionamentos. Precisamos passar pela penitência obrigatória junto a Steve, o marido dedicado – e agora meio surdo e acomodado – que lamenta mais essa mudança no roteiro. E nisso ele encontra a simpatia da egocêntrica Carrie, afinal ela também está tendo que se adaptar a um novo roteiro, dessa vez sem Big.

Só Miranda e Che e capacidade que elas têm de olhar em volta torna tragável, em pleno ano 2022, gastar meia hora de streaming com um bando de gente rica que segue a vida como se os últimos anos não tivessem sido nada além de um grande contratempo. Mesmo que Miranda tenha uma crise de “mulherzinha”, preocupada com a demora de Che em responder uma mensagem ou atender o telefone. Afinal ela mesma se pergunta afinal, como é que é esse novo papel, esse personagem inédito de uma mulher que saiu de um relacionamento hétero para outro com uma pessoa não binária e que se recusa a assumir papéis – elas não querem ser o “homem” da relação, muito embora seja desconfortável notar que é isso que tanto Miranda quanto nós espectadores esperamos.

Resta saber o que o último capítulo trará para Rock, Miranda e Che nesta quinta-feira (3). E talvez numa segunda temporada, algo que ainda não está confirmado.

Maratona

Como toda mulher é sadomasoquista (só para continuar no tema clichês cobre mulheres), a HBO relançou todas as seis temperadas de “Sex and the City” para acompanhar o revival. Como toda série da marca, essa é boa o suficiente para garantir uma maratona de qualidade. Mas assim como a nova versão, a série envelheceu mal, mas serve como um bom lembrete do que as mulheres tiveram que tolerar até aqui (e muitas das coisas que conseguimos vencer).

É o caso da excessiva pressão pelo casamento. No seriado, mesmo Samantha tem um episódio (quando ela fica doente) em que lamenta estar solteira, “sem um homem que se importe”. Tudo porque ela pega uma gripe e precisa de alguém para consertar cortinas (nada que não se resolva com alguns dos milhares de serviços de pequenos consertos que temos no mundo todo).

É educativo, no entanto, relembrar o tanto de problemas imaginários com os quais uma mulher precisava lidar. Talvez seja especialmente importante para a nova geração de mulheres entenderem que, antes delas, houveram outras que desbravaram caminhos, enfrentaram obstáculos e que merecem respeito. Naquele fim dos anos 90, começo dos anos 2000, apesar da veia casamenteira, “Sex and the City” fez algo importante: permitiu que uma geração pudesse ver e falar sobre sexo numa perspectiva quase que inteiramente feminina.

E faz tão pouco tempo, não? Em termos históricos, estamos falando de hoje de manhã, ontem à noite.

Não que “Sex and the City” fosse lá muito militante. Há momentos constrangedores, especialmente quando os roteiristas tentam inserir algum debate mais animado na conversa das amigas. Mas na “ação”, nos dramas, a série é ótima em sempre expor o ridículo de certas situações (como quando Miranda se sente um fracasso por ser uma advogada bem-sucedida sem namorado aos 34 anos).

Porém, independente do fundo político, “Sex and the City” é bom entretenimento. Personagens divertidos, histórias interessantes e aquela ressaquinha moral de sempre. Recomendo.

Streaming

“And Just Like That” e “Sex and the City” estão em cartaz na HBO Max.

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