Um alemão e 500 mil índios

Livro relata as aventuras de um pioneiro europeu em solo brasileiro no século 16

Um pequeno livro de bolso, da Alianza Editorial, 127 páginas, editado em 1986, traz mais um personagem fantástico que comumente se encontra na fronteira entre o Brasil, Paraguai e Argentina. No entanto, não se trata de qualquer apequenado. É um alemão que cruzou por essas bandas entre 1534 e 1554. Esteve na fundação de Buenos Aires e de Assunção. Não gostava e urdiu contra Cabeza de Vaca. Conheceu 40 nações indígenas, mais 500 mil índios, entre eles, as Amazonas. Percorreu ainda as plagas da Bolívia, Peru, Uruguai e, talvez, Chile. E sangrou, feriu, matou e dizimou muitos índios nesses 20 anos das andanças pela Bacia do Prata.

A persona nada mais é que Ulrich Schmidel, alemão da Baviera, arcabuzeiro, mercenário, vereador e cronista.  Em “Relatos de la conquista del Rio de la Plata y Paraguai, 1534-1554”, Schmidel conta suas aventuras ao lado dos conquistadores espanhóis como Domingo Martínez de Irala, Alvar Núñez Cabeza de Vaca e Pedro Mendoza. Suas histórias são consideradas importantes porque foram feitas por um soldado e não por um adelantado como Cabeza de Vaca ou por escribas oficiais – comuns nas expedições espanholas e portuguesas. Além de Schmidel, um outro alemão, Hans Staden, soldado, escreveu as suas experiências na América do Sul. Cabeza de Vaca também é considerado um dos primeiros historiadores da América e seus relatos estão em “Naufrágios e Comentários”.

Antes de alguns detalhes, voltemos ao livro. A edição em espanhol é dividida em 55 capítulos, curtos, descritivos, mas tem um prólogo bom a respeito de Schmidel, da tradução e edição espanhola, uma bibliografia seleta, notas, uma lista das nações indígenas e um índice geral. É um bom livro de leitura rápida que merece uma edição em português.

O que mais me chamou atenção, muito mais que a fundação de duas cidades, Assunção e Buenos Aires – importantes na América Latina, é a quantidade de índios que Schmidel foi encontrando pela frente na sua jornada, geralmente utilizando os rios da região – Paraná, Prata, Paraguai, entre outros. Ele diz que saiu no final de 1534 de Cadiz, na Espanha, junto com mais três mil soldados, sob o comando de Pedro de Mendoza, numa expedição até o Cone Sul, a soldo e mando da coroa espanhola.

“Com ajuda de Deus, chegamos ao Rio da Prata em 1535 e encontramos um povoado de índios, na qual viviam um dos mil homens chamados charruas (…) neste local, construímos uma cidade que se chama Buenos Aires, num lugar onde viviam os índios chamados querandis, cerca de três mil homens, mulheres e filhos”, descreve Schmidel.

Com cavalos, éguas, arcabuzes, canhões, espadas, escudos e outras armas até então desconhecidos pelos índios, tem-se a primeira carnificina. “Os índios nos atacaram com grandes forças, com 23 mil homens de quatro nações diferentes: querandis, bartenis, charruas e timbues”. Dos timbues, boas lembranças. “Estes povos levam em ambos os lados do nariz, uma estrelinha de pedras brancas e azuis. São altos e bem apessoados. No entanto, as mulheres, jovens e velhas, são feias…São uns 15 mil indivíduos ou mais”.

Assim que vai navegando os rios Paraná e Prata, Schmidel vai encontrando a indiarada. Os curendas se alimentam de pescado e carnes e são uns 12 mil homens aguerridos que tinham um sem fim de canoas. O mesmo com os quiloazas – 40 mil guerreiros – os mocoretaes – “uns 18 mil guerreiros com muitas canoas” – os zennais, mepenes, dois mil guerreiros e 10 mil homens, respectivamente, que “habitam dispersos um território de quarenta léguas”.

Eu voltei ao livro e fiz questão de contar: charruas, querandis, timbues, curendas, quiolazas, mocoretas, zennais salvaisco, mepenes, carios, paperus, timbiues, jarayes, jheperusy, batatheis, macarua, mapais, viaza, carios, polonos, tupis…A minha conta passou dos 190 mil índios e as referências de Schmidel, embora cite homens e mulheres, se debruça mais sobre guerreiros.

Schmidel encontra índio de todo tipo: baixos e “homens e mulheres altos” – sobre os curemaguaes, diversas línguas, os carios que comem carne humana, além da boa alimentação que inclui carnes, peixes, galinhas, avestruzes (deve ser emas), mandioca, palmito, milho e uma infinidade de raízes. “Os maipais tem de tudo, mandioca, milho, batatas, cervos, ovelhas indianas (lhama, vicunha), patos, gansos, avestruzes (ema), galinhas e outras aves. Os bosques estão cheios de mel e quanto mais se entra na ação, mais a terra é fértil”.

As amazonas, segundo Schmidel, viviam numa grande ilha rodeada de água e de difícil acesso nas épocas das cheias – deve ser a região do Chaco ou Pantanal. “Essas amazonas são mulheres e seus maridos vêm vê-las três ou quatro vezes ao ano. Se uma mulher fica grávida de um menino, o manda ao homem, mas se é menina, fica e tem o peito direito queimado para usar melhor as armas, pois são mulheres belicosas”.

“De pronto surgiu uma pendência entre os carios e os surucusis. E a estes, os cristãos disparamos nossos arcabuzes e matamos muitos deles e escravizamos cerca de dois mil homens, mulheres, moças e rapazes, e os tiramos tudo o que pudemos tirar…matamos a muito e prendemos homens, mulheres e crianças…nessa viagem, gastamos um ano e meio, não fazendo outra coisa do que uma guerra atrás de outra, e escravizamos 12 mil índios”. Schmidel, próprio, descreve o seu comportamento como um mercenário, a morte era uma constante, uma luta por despojos e a escravização dos índios.

Schmidel também não gostou de Cabeza de Vaca. Fez algumas expedições com o espanhol na região do Grande Chaco e o considerava um autoritário, cruel, que não gozava da simpatia dos subordinados, colocou, por várias vezes, os cristãos em risco de morte, muitos morreram – enfim, um cara problemático, que compartilhava com os seus, preferindo dormir a maior parte do tempo.

“Estando a maior parte da nossa gente doente e o restante enojado com o nosso capitão general (Cabeza de Vaca), não podemos fazer nada e assim baixamos pelo Rio Paraguai até chegar a nossa cidade de Assunção, onde havíamos deixados os demais cristãos. Ali, o nosso capitão general voltou a ficar doente de febre e ficou 14 dias em casa, mais por picardia e soberba que enfermidade, já que ele não gosta dos soldados, e nem se mostrava para eles como é devido”. Não deu outra: Cabeza é preso e mandado de volta a Espanha.

Embora toda licença que deve ser feita ao relato de Schmidel que o narrou para um escriba bem depois de sua volta a Alemanha – sua volta foi motivada por uma carta que recebeu do seu irmão Thomas -, tem que se considerar que toda a região do Prata era mui querida pelos índios. Terra fértil, de boa pesca e caça. Apesar da fome – uma constante nas expedições – a maioria das tribos encontradas e trucidadas por Schmidel viviam muito bem.

Seu relato é importante para contextualizar a história indígena. Além de viver muito bem, segundo Luiz Rolon, médico paraguaio que morou em Puerto Iguazu na Argentina, os índios adoravam a região, com fauna e flora exuberantes, e tinham maior apreço pelas Cataratas do Iguaçu, Sete Quedas e outras quedas d’água. Rolon falava de um vértice, nunca encontrado, que somava as pontas das Cataratas e Sete Quedas numa pirâmide ou num grande ponto de energia cósmica.

A historiadora Elaine Pereira Rocha, na sua tese “Guarani…Presente!!!”, que mostrou que os guaranis mais do que mereciam as terras que a Itaipu recusava admitir nos anos 90, atentava que a historiografia registrava a presença dos índios até os anos 40 do século passado, mas que simplesmente sumiram dos registros dos anos 50 para cá. O que aconteceu com toda essa indiarada que sumiu desde que Schmidel começou a exterminá-los, merece mais do que um livro: uma história inteira.

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