Ana Rosa Tezza fala sobre como a Ave Lola gestou um Shakespeare por mais de cinco anos

A fundadora da companhia revela desafios e prazeres em fazer personagens viverem intensamente na peça "Sonho de uma noite de Verão", apresentada num teatro-tenda durante o Festival de Curitiba 

Pensar em Shakespeare não foi algo que surgiu do dia para a noite na vida de Ana Rosa Genari Tezza, fundadora da Ave Lola, companhia curitibana premiada que já tem mais de dez anos de estrada com circulações no Brasil e no exterior. A paixão é antiga, nasceu do reconhecimento dos ensinamentos teatrais que moram na obra do “Bardo”, ao conseguir ver as raízes do teatro moderno nas peças escritas pelo maior dramaturgo da língua inglesa.

Nem por isso arriscou a pegar qualquer atalho. O caminho que levou “Sonho de Uma Noite de Verão” a um palco montado dentro de uma tenda durante o Festival de Curitiba, foi preparado com o cuidado e o respeito necessários para que a peça seja um novo sucesso no repertório da companhia. As atrizes, os atores, os artistas e os produtores do espetáculo estão há mais de cinco anos estruturando o feito que se realiza agora: a estreia do primeiro Shakespeare da Ave Lola. 

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Ana Rosa Genari Tezza

Na entrevista a seguir, Ana Rosa fala sobre o tempo de gestão dessa peça de teatro, dos desafios e os prazeres vividos no processo de preparação dos artistas, e sobre o que o público pode esperar do “Sonho de uma noite de Verão” da Ave Lola.

Em 2014, a Ave Lola trouxe para o palco o teatro russo com “Tchekhov”, a montagem foi um sucesso grandioso. Dez anos depois, “Sonho de Uma Noite de Verão” estreia como o primeiro Shakespeare no repertório da companhia. Por que somente agora a Ave Lola se propõe a encarar um texto do maior dramaturgo da língua inglesa?

Então, começar a pensar em Shakespeare, não foi uma coisa do dia pra noite. Eu sempre fui apaixonada pelo universo shakespeariano, não por uma questão frívola nem superficial, senão porque dentro da obra de Shakespeare existe muito ensinamento sobre o teatro, a teatralidade, o ritmo. 

Ele foi precursor de coisas incríveis dentro da dramaturgia, coisas que depois acompanharam o próprio Tchekhov, Ibsen, o Teatro do Absurdo; na obra de Shakespeare, tem muita dica do que depois se vê em movimentos de dramaturgias modernas, dentro dos textos dele já tinha pista de tudo isso. Ele era um cara que não estava em busca de uma linguagem teatral específica, não queria provar um ponto, usava tudo o que precisava para contar uma ficção; a própria ideia de ficção dentro da obra dele é uma coisa que muito me interessa, como ele brinca com o que existe e o que não existe, a sombra e a luz dentro de uma mesma perspectiva. 

Eu estudo e gosto de Shakespeare desde sempre, e a companhia, há alguns anos, vem fazendo leituras de peças dele com o público. Isso tinha o intuito de preparar, de alguma maneira, os atores e as atrizes da Ave Lola para enfrentar um texto que tem a complexidade de ter uma linguagem muito longe da linguagem cotidiana, transposta com uma poética que dá um salto do ponto de vista do realismo e do naturalismo. Ela é rimada, tem uma estrutura complexa na hora de falar sobre o que está sendo dito na cena, precisava de treino. Então, é um projeto que se realiza agora, mas que estava sendo estruturado há, pelo menos, cinco anos.

A Ave Lola faz “teatro de grupo”, algo raríssimo atualmente. Não são artistas juntos em um trabalho pontual, mas uma trupe que pesquisa e experimenta o teatro ao longo dos anos; ninguém apenas chega e vai para o palco, todos têm mais de uma função e se envolvem com o processo de criação e produção. Quais foram os maiores desafios e os maiores prazeres que essa montagem de Shakespeare na tenda já proporcionou para vocês?

Eu sempre digo que uma das coisas mais incríveis é quando você vê um monte de personagens em cena, ao mesmo tempo, e nenhum deles está esperando para viver só na hora em que fala. Ou seja, enquanto eles estão coabitando uma cena, uma situação, você consegue enxergar todos vivendo a sua vida de fato; não são atores esperando para dar a fala, são personagens vivendo as suas vidas em uma determinada situação. Quando são dois, você consegue. Quando são três, dá conta. Quando há oito, nove personagens ao mesmo tempo numa cena, isso é um grande desafio. 

O maior desafio foi fazer com que os artistas e as artistas em cena entendessem e conseguissem executar essa dificuldade de estar vivo com o seu personagem, vivendo no universo ficcional de maneira intensa dentro da situação, mesmo quando não estão dando a fala. Fazer muita gente viver em cena ao mesmo tempo é muito difícil e isso acontece o tempo inteiro em “Sonho de Uma Noite de Verão”. O que eu mais amei foi quando essas cenas começaram a acontecer: dar conta do desafio, foi o maior prazer, e o maior desafio foi dar conta desse prazer.

Do ponto de vista da produção, a peça tem vários universos que coabitam. Shakespeare é contemporâneo também nesse sentido, a dramaturgia não se resume a um único mundo, tem o mundo das fadas que coabita com o mundo dos atenienses, que coabita com mundo dos apaixonados, que coabita com um mundo dos artesãos. Produzir figurino e cenário que dê conta de todos esses mundos é desafiador: “Como você cria cenários que se ressignificam a cada cena?; Como se faz um figurino que dê conta de tantas trocas e também seja contemporâneo sem negar a origem da obra?; Como que é uma fada e um duende?: Nos dias de hoje, com um mundo tão espetacularizado, como não cair na Disney para fazer ‘Sonho de Uma Noite de Verão’?”

Assim, a produção foi difícil, é um espetáculo caro, são muitos artistas em cena, o tempo para a montagem tem que ser grande porque, caso contrário, se corre o risco de não chegar perto da grandeza que a obra oferece. Só que a equipe de produção da Ave Lola é incrível, então, deu tudo certo.

Por que o público deve assistir “Sonho de Uma Noite de Verão”? O que as pessoas podem esperar deste novo espetáculo da Ave Lola?

O que me interessou neste texto de Shakespeare e interessou à companhia foi, primeiro, a peça ser uma comédia extremamente divertida e inteligente; uma obra que confronta a ideia de amor social com compromissos, como o de casamento e de permanência, um amor que você controla, versus a compulsão erótica que acomete esses quatro jovens que estão na floresta em busca das suas paixões, e como isso é fugaz e descontrolado, como independe da nossa vontade.

A peça fala sobre erotismo de uma forma tão poética e ao mesmo tempo muito inteligente, como quando Oberom pinga um suco no olho dos amantes para fazer com que eles se apaixonem pela primeira coisa que vejam. É tão bonito você imaginar que é mais ou menos isso que acontece quando alguém se apaixona, é inexplicável, é irracional, é um impulso, é quase uma doença. Eu acho divertido do jeito que ele discute isso e coloca uma interrogação sobre o quanto a gente pode ser insubordinado quando somos acometidos por esses rompantes tão profundamente humanos. A paixão é uma coisa violenta e ela ajuda a gente a ser insubordinado. 

O texto revela a questão feminina também, mostra o quanto o corpo da mulher está em desvantagem num universo extremamente patriarcal, onde os homens têm direito sobre o corpo, sobre a opinião, sobre tudo das mulheres; e ele coloca ousadia na filha de Egeu, para ela sair fugida da floresta e não se submeter ao que o pai e o rei determinam. O autor é extremamente contestador das regras, não faz política do ponto de vista direto, mas traz situações que dão a pensar. E eu acho que tem muito sobre isso. Além de que “Sonho de Uma Noite de Verão” é uma peça divertida, tem um ritmo incrível e obriga os artistas a exercitarem a inventividade: “Como é que você dá conta de tantos universos paralelos e faz com que tudo seja crível e dialogue entre si?” 

Pode ser uma surpresa para o público ver como a Ave Lola faz um Shakespeare, a gente tem uma linguagem, uma assinatura. Eu espero que as pessoas se surpreendam, se divirtam, pensem e estejam juntas nesse momento de festa.

Serviço: Programação da Tenda Ave Lola

(Eventos durante o Festival de Curitiba)

Endereço: Rua Marechal Deodoro, 1227 – Centro
Ingressos: Pague O Quanto Vale (distribuídos por ordem de chegada ao teatro)

Espetáculos Sonhos de Uma Noite de Verão e exposição Raro de Oliveira

De 27 de março a 21 de abril de 2024
Horários: 27 a 31 de março às 19h, 3 de abril às 14h, 4 e 5 de abril às 19h, 6 de abril às 10h, 7 de abril às 19h, 10 a 14 de abril às 19h30, 17 a 21 de abril às 19h30
Sessão com audiodescrição e libras: 14 de abril às 19h30
Classificação Indicativa: 12 anos
Duração: 2h

Wes Ventura + Lançamento do “Tcharam – programação anual da Ave Lola”

27 de março de 2024 às 22h
Sinopse: Show de Wes Ventura para o lançamento do “TCHARAM – programação anual da Ave Lola”. Wes Ventura é cantor, compositor e instrumentista natural de Barretos/SP, radicado em Curitiba há sete anos. O artista caminha pelas sonoridades afro-brasileiras e retrata seu cotidiano abordando questões étnico-raciais, sociais, liberdade e amor.

Exposição Desenhos de um ensaio de verão, do artista Raro de Oliveira

De 04 a 21 de abril de 2024
Ingressos: A exposição será gratuita e estará aberta para o público nos mesmos horários da temporada do espetáculo Sonho De Uma Noite de Verão
Sinopse: Desenhos de um ensaio de verão apresenta obras que foram produzidas nos ensaios da montagem da peça. São sketches que procuram revelar um retrato íntimo e afetivo dos bastidores da criação teatral. Capturando improvisos, erros e acertos da trupe de artistas enquanto realizavam seu complexo e alegre fazer cênico.

Festa Ave Lola – com DJ Dande Tavares

6 de abril de 2024 às 22h
Sinopse: Festa Ave Lola ao som do DJ acreano Dande Tavares, um pesquisador das sonoridades musicais local, nacional e global. Dande também é ativista socioambiental e navega pelos ritmos musicais colhendo os ativos dos ritmos brasileiros, latinos e universais atemporais.

Show com Klüber

7 de abril de 2024 às 15h
Sinopse: Klüber é uma artista curitibana de 26 anos que define seu som como “Pop Prolixo” ao fundir algumas referências da música de concerto com rock alternativo, folk, indie, grunge e pop alternativo.

Outras informações aqui.

A temporada “Sonho de Uma Noite de Verão” é uma realização do Ministério da Cultura e da Ave Lola, pela Lei de Incentivo à Cultura. Tem como instituição beneficiada o Hospital Pequeno Príncipe e o patrocínio Aldo Solar, Facchini, Arcelor Mittal, Kuhn, MA Máquinas, Metisa, Ritmo Logística e Demóbile.

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