Uma canção para mim

Jeanne Cherhal tem uma voz muito doce. Ela acabou de lançar um álbum chamado L’an 40 (O ano 40), o que talvez lhe revele a idade. É seu sexto álbum. Das dez canções, uma ela fez pra mim, “César”. Por vício francês, errou o jeito de escrever meu nome, escreveu “César” em vez de Cezar, um deslize bem frequente, uma vez que a maior parte dos czares do mundo neolatino se escreve com s. Os césares mais célebres levam s e acento, enquanto os desacentados não têm assento garantido entre os nobres. César aparece no primeiro resultado de pesquisa como “rei, imperador”, enquanto a variante Cezar é “o que tem cabelo comprido” (emoji de “fazer o quê?”). Só indo além dos primeiros resultados é que dá pra encontrar algo mais interessante, como a expressão latina caeso matris utero, algo tipo um “talho no ventre/útero da mãe”. É esse caeso que significa “cortado, talhado”, e de onde vem o César/Cezar. E aí vêm junto as fofocas do tipo nossa, nem te conto, não espalhe, mas diz-que o imperador Júlio César teria nascido a partir de um talho no ventre da mãe. Cesariana.

E a canção que Jeanne, a doce Jeanne, fez pra mim diz que meu surgimento em sua vida é uma grande revelação, verdadeira epifania, o início de tudo, e que ela me carrega como a um mundo, e se o trabalho é duro demais, então eu faço a natureza se dobrar, abrir um talho em sua pele. E diz que sou o interstício que deixou uma cicatriz (interstice e cicatrice rimam lindamente) na base de seu pergaminho, de seu manuscrito, e que o meu advento foi a assinatura de uma obra. Ainda diz mais, diz que sou divina criatura, que respira o seu mesmo ar, deitado nu junto dela, eu, que sou seu rei e faço suas lágrimas rolarem.

Fiquei cheio de mim, fingi modéstia, abanei a mão num tapinha vertical, ah, guria, bondade tua, eu nem sou tudo isso.

É bom ver alguém te rendendo homenagens. Revi minha vida e minha vida está ali naquela letra, encaixada nela. Pensava extrair (a fórceps, me desculpando pela imagem meio trágica sobre parto) uns sentidos que na verdade eu não extraía, mas colocava. E o filme da minha vida foi sendo editado conforme a letra da canção, foi desconsiderando as partes que eu não entendia, jogando fora aquelas que não pareciam confirmar o viés elogioso. Cortando aqui, dobrando acolá, ignorando uma parte, supervalorizando outra, eu acabo de fazer quase um origami, colando e decalcando a canção na minha vida e dizendo: nossa, sou muito eu, essa música é pra mim. Como ela conseguiu me traduzir assim?

Bem, é óbvio que a canção não foi feita pra mim e eu não tenho o prazer de conhecer Jeanne Cherhal, a não ser como um ouvinte que conheceu o álbum L’an 40 e gostou. Ela canta em “César” a cena de um nascimento por cesariana, um parto mesmo, o desenlace dos corpos, o agradecimento à lâmina que abriu um talho em sua pele e inter|feriu n|a natureza – mais ou menos como esse sinal de |, ou de –. A canção fala do trabalho de parto, quase um transe, fala de “Sua Majestade, o bebê” (alôu, Freud, peguei emprestado, tá?), imperador de seu mundo.

Uma imagem contendo edifício, ao ar livre, tijolo, grama

Descrição gerada automaticamente

Todos esses parananuê me fazem pensar em como tecemos, emprestamos, editamos sentidos pra nossa vida, urdindo versões que podem nos jogar lá pra cima, ou, no lado oposto, criar imagens catastróficas sobre quem somos. Isso reitera a ideia de que não apenas extraímos sentido das coisas, mas emprestamos, embutimos a nossa subjetividade nas coisas que nos são ofertadas, que aparecem à nossa frente, como uma canção, um quadro, um livro, qualquer obra de arte, mas não apenas, também uma conversa, até mesmo um comando objetivo. Uma bula de remédio, por mais objetiva que seja, pode causar reações diferentes em leitores diferentes. Afinal, há os indiferentes. Os que sequer leem. Os hipocondríacos. Os que leem e desistem do remédio. Os que leem e já começam a sentir todos os efeitos colaterais. Os que melhoram só de ler. Os que acham que vão morrer, e por aí vai – e vai mesmo, morrer, um dia.

No caso das obras de arte, uma vez eu disse a meus alunos (dou o módulo de Experiência Estética numa pós em Comunicação): “pelamor, não sejam grossos, não se plantem diante de uma obra de arte e soltem pérolas do tipo ‘mas que merda é essa?’, ‘isso aí até meu cachorro faz’, ‘isso aqui é o extintor de verdade ou era pra ser uma obra?’. Digam o seguinte: ‘essa obra não conversa com o meu universo de significações, não toca meu repertório sensível, não é capaz de provocar fissuras que desconcertem meu tecido imaginário e simbólico’, ‘não me sinto comovido nem movido a emprestar minhas questões pessoais a uma obra que não me propõe uma troca’”.

Eu falo isso, os alunos riem (nem todos, claro, afinal a piada pode não ter conversado com o universo imaginário e simbólico e tal e talz). Eu rio, como péssimo contador de piadas que sou. Só que tem algo aí que foge do mero sarcasmo. Na coluna passada, falei de uma experiência que tive quando pedi pra que alunos (sujeitos diferentes entre si, portanto) lessem o mesmo livro. Foram leituras diferentes, claro, porque há sempre algo dentro do sujeito que pode ou não ressoar a partir de um encontro com algo do mundo externo. Isso pode acontecer também com a mesma pessoa, só que em tempos diferentes de sua vida (ou seja, quando ela nem é mais a mesma pessoa, mas pelo menos mantém os mesmos RG e CPF). O que provocou alvoroço na adolescência pode ser uma decepção numa idade mais madura. Meu relacionamento com O grande sertão: veredas foi desse tipo, invertido: não me dizia nada na primeira vez, me disse muito na segunda tentativa.

Isso é muito bonito, não?

Há, no entanto, casos que eu julgo problemáticos: ler textos genéricos e emprestar sentidos pessoais como se fossem verdades sobre si. Lembro do caso em que o estatístico e psicólogo francês Michel Gauquelin distribuiu o mapa astral de um serial killer (Marcel Petiot) para pessoas completamente diferentes, nascidas em épocas variadas e tal. Ele não avisou que o mapa era do assassino, disse que era da pessoa que o recebia. A quantidade de “nossa, isso aqui é muito eu” foi impressionante (94%).

Dando uma torcidinha aqui e acolá, vemos a nós mesmos até no formato das nuvens, no bolor do pão, na umidade infiltrada do reboco. Pareidolia do ego aplicada à palavra.

Uma imagem contendo xícara, comida, rosca, café

Descrição gerada automaticamente

(As ilustrações que eu escolhi dão uma ideia do que seja pareidolia. Dá um Google, é bem legal – pelo menos conversa com meu universo de significações).

Sou de humanas e não quero comprar briga com quem curte e se diverte cozoróscopo. Esse meu tempo já passou, nem vou dar conselho, nem sermão, o que seria deveras pretensioso. Só achei legal pensar o quanto a objetividade dos objetos é sempre investida pelos sentidos do sujeito, o que pode fazer desse encontro uma ampliação no mundo dos sentidos, ou uma prisão confirmadora de rótulos.

Em tempo: apesar do nome, nasci de parto natural. E meus cabelos compridos duraram dois anos. Os talhos, as lacunas, os vãos, no entanto, esses existem. E morrerão comigo.

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Pra quem quiser ouvir “César”, a canção que Jeanne Cherhal fez e não fez pra mim, vai aqui o link do Spotfy, mas ela está em outros apps de música também.

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