Um beijo

Sofro um bloqueio mental que espero que logo passe. O bloqueio vem acompanhado de um quadro de abatimento físico, psíquico, decepções e tristeza.

Este quadro clínico – linguajar de médico – começou a se manifestar em 2014, piorou nos últimos 18 meses e esta me levando, nos últimos 45 dias, à loucura. Não consigo pensar e tampouco elaborar coisas novas. Tudo que faço é repetir.

Repito os desfazeres do dia a dia e os pensamentos.

O bloqueio não permite a diversidade de pensamentos: a ideia é fixa em três ou quatro coisas, que se repetem – como um cachorro correndo atrás do rabo – em círculo. No momento em que vou falar ou escrever sobre estas – três ou quatro – coisas, ou qualquer outra, não consigo elaborar nada com profundidade e assim como o cachorro correndo ao redor do rabo constrói sulcos no chão, eu construo-os na mente.

É assim que meu pensar pesar cotidiano está: como um LP riscado e/ou sujo que mantém a agulha no mesmo sulco e a frase ou nota musical se repetindo.

Não fui ao médico, portanto não tenho o diagnóstico preciso, mas sei que é – autodiagnóstico – algo que tem a ver com a profunda decepção com a humanidade e/ou a nossa civilização.

Não é um desabafo é só a constatação que – no mundo atual – está difícil viver, pensar, falar e escrever. Mas, mesmo com essa dificuldade, escrevo o meu – parcimonioso – “Um beijo”. Parcimonioso o texto e o número de beijos.

No “Mil beijos“, informo as razões que me levaram a comprar o Long Play (LP) Miúcha. Neste caso – apesar da economia da Adriana Calcanhoto, inclusive no sobrenome com um só t, – as razões são as mesmas.

A economia da Adriana Calcanhoto também está na dedicatória.

Miúcha dá mil beijos para duas pessoas que compraram o seu disco, enquanto Adriana dá um só para dividir em duas pessoas. Meio beijo para cada uma. Até que é bom, agora com a pandemia sequer dá para dar ¼ de beijo.

Assim como no da Miúcha, neste – Enguiço – disco também há encartes. No caso são dois: um com uma linda foto dela [Adriana] com flores na mão e uma dedicatória à Maria Bethânia de um lado e do outro as letras das músicas; e o segundo encarte com a foto – mais próxima e detalhada – da capa e no verso um texto de Luis Fernando Verissimo:

Durante muito tempo toda cantora gaúcha que vencer no norte será comparada com a Elis Regina e essa é uma doce sina na qual a Adriana não escapou.

(…).

Adriana não é igual a ninguém, não lembra ninguém, não segue ninguém. Ela inaugura outra linguagem.

(…).

Adriana é um produto… da apropriação irônica ou não do brega, da teatralidade na mistura de estilos, dessa coisa meio Berlim anos 20 de Porto Alegre.

O Enguiço que tenho – comprado em um sebo – traz na contracapa um ‘carimbo’ redondo tendo ao centro a marca da produtora, “CBS” circundada pela frase, “Amostra Invendável”.

Mesmo invendável foi vendido e contém uma dedicatória muito – econômica – simples assinada pela Adriana, que imagino ser a Calcanhoto:

I. e A.,

Um beijo

Adriana

O disco contém 10 músicas: cinco de cada lado, e destas duas – “Enguiço” e “Mortaes” – são compostas pela Adriana, e nelas tentei buscar a razão de I. e A. se desfazerem do LP ou se desfazerem como casal.

Creio que encontrei não a razão da possível separação do casal, mas “Mortaes” – é assim mesmo: mortaes – pode vir a ser a música-poema que expressa a magoa da, ou de uma separação: Não quero nem ouvir falar de ti / Eu quero ensurdecer [te vejo na TV] / Quero perder-te no mofo das esquinas / Esquecer tuas manias e morrer / Tenho certeza que assim, longe de mim / Jamais será feliz… / … Por fim esqueça-me também / Se puderes, se fores capaz / Não quero mais abraços nem punhais / Derreto e afago as mágoas / Nos pecados mortaes.

Não há como ficar sem tentar buscar a razão ou razões para se desfazerem do “objeto” autografado e no caso invendável.

Será que I. e A. desfizeram-se do disco por dificuldade financeira?

Creio que não, não valia a pena: paguei só R$ 4,00 no sebo.

Outras razões podem existir, mas deixo isto por conta da imaginação dos poucos/as leitores/as que devo ter. Em função do bloqueio não consigo imaginar outras.

Bloqueado, meu cérebro continua como um LP riscado e/ou sujo que mantém a agulha no mesmo sulco e a frase ou nota musical se repetindo: “Fora Bolsonaro e Mourão”, “Fora Bolsonaro e Mourão”, “Fora Bolsonaro e Mourão”, “Fora Bolsonaro e Mourão”, ….


Para ir além

Enguiço, Adriana Calcanhoto. 1990.

Achados & Perdidos

Sobre o/a autor/a

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