Humor, lâmina afiada

Eu falei de humor já na coluna passada. Volto a ele porque é um tema que, ora-ora, me diverte.

Castigat ridendo mores: “rindo, corrigem-se os costumes”. Não é exagero. São mais do que conhecidas as obras, desde os gregos (veja, cerca de 2500 anos atrás!), que satirizam maus costumes, que transformam, por exemplo, o avarento ranzinza em modelo risível a não ser seguido. O riso tem – claro! – função social. E individual, já que a relação entre indivíduo e sociedade é de interdependência. Impossível termos uma sociedade saudável com indivíduos doentes, e vice-versa.

Em outras palavras, uma boa maneira de mudar as coisas é apontar para o absurdo delas e rir (reconhecer o absurdo em nós mesmos é mais difícil, mas estamos na luta. Ou não?). Felizmente, houve o caso daquele menino despegado das convenções que teve a coragem de gritar “o rei está nu” e provocar um carnaval no reino.

Deixar-se cortar pelo humor pode ser sábia decisão. Deixar a lâmina aguçada do texto, da cena, da imagem abrir uns talhos em nosso mundo simbólico instituído. Só a fissura no concreto armado das convicções pode nos demover, comover, mover. Só fazemos travessia, ou seja, só saímos de onde estamos se algo nos desequilibrar (palhaço pisando em casca de banana?) e nos levar a um equilíbrio em outros portos, até uma nova travessia. O próprio ato de andar pede uma projeção do corpo no desequilíbrio para que um outro chão nos espere sob os pés.

O humor não é um campo do conhecimento à parte. Ele perpassa, fura e costura a comédia humana em ação.

Humor, portanto, também é coisa séria. E mexe com assuntos sérios. Não à toa, envolve-se o tempo todo em discussões polêmicas e em perguntas que já viraram arroz de festa na carreira de vários humoristas: qual o limite do humor?

Pensando em uma das maiores tragédias que a humanidade já viveu, o holocausto nazista, Viktor Frankl, conhecido psiquiatra judeu que sobreviveu aos campos de concentração, afirma: “o humor foi uma arma na luta pela autopreservação”. Isso reforça o quanto, ao contrário de um certo senso-comum, o humor não é alienado e desvinculado do amplo espectro da experiência humana, que vai do trágico ao leve e lépido.

Sigmund Freud tem um pequeno ensaio chamado justamente “O humor”, escrito em 1927, em que fala da capacidade que o sujeito tem de rir de si mesmo. E conta a história do condenado que, sendo levado à forca em uma segunda-feira, exclama: “belo jeito de começar a semana!”

Não vou entrar em profundas teorias freudianas a respeito do humor que nasce de uma relação entre o Eu (ego) e o Supereu (superego), mas podemos pensar no humor sob diversos ângulos, entre eles como a defesa de um sofrimento ameaçador. Em linhas gerais, o eu dá menos importância a si mesmo, idealiza-se menos, enxerga-se como risível. Se há o famoso ditado “quanto maior o tamanho, maior a queda”, podemos dizer que, com um “ego menor”, a queda gerada pelos descompassos e desconcertos que a vida nos impõe fica mais suave. E rir de si mesmo, levar-se menos a sério, é um jeito interessante de carregar menos cruzes pesadas nas costas. Tais cruzes podem ser desde as dores do mundo até os rótulos que acreditamos sustentar e que nos pesam mais do que dizem quem realmente somos.

O que não tem nada a ver com desejar menos e deixar de ir atrás das coisas que nos fazem sentido, que fique bem claro. Muito menos com parar de se importar e de se envolver com as dores do mundo, que são muitas. Eu, pelo menos, não sou adepto do riso que provém do “neocinismo” ou do “narcinismo” contemporâneo. Nem das risadas que têm por objeto os mais sofridos.

O humor é um pequeno triunfo do princípio do prazer em relação à dureza do princípio da realidade, para continuarmos a pensar em termos freudianos.

E em tempos difíceis, de incerteza, de reclusão, percebemos diversas formas de lidar com a irrupção daquilo que outro psicanalista importante, Jacques Lacan, chamou de real. Há muitas escapatórias, vias de fuga às quais o indivíduo pode se agarrar, muitas delas nocivas ao próprio sujeito e ao seu entorno. Da neurose à loucura, as possibilidades são muitas, passando pela violência, pela depressão, pela comida em excesso, pelo cigarro, pelas drogas, etc. E bota etc nisso, mas eis que a nobreza do humor irrompe, proporcionando alívio ao sofrimento e entrando no “terreno da saúde psíquica”, novamente segundo Freud.

Então: podemos derivar por muitas vertentes do humor. Como alívio cômico, mas também como forma de enfrentar a realidade. O humor, afinal, não é resignado, mas rebelde. O humor não se conforma à forma nem à fôrma. Ele precisa surpreender para nos fazer compreender.

Mas nem todas as pessoas são capazes da atitude humorística, também é Freud quem afirma.

Minha tia, de quem falei na crônica passada, hoje tem mais de oitenta anos, sobreviveu à Covid-19, e quem sabe eu devesse perguntar se ela foi capaz de “atitude humorística” quando dei tchau quando chegou lá em casa para uma visita. Mas o eu-menino tímido, falando bem sério agora, ainda me habita e vai habitar até a hora derradeira, quando a Indesejada das gentes chegar com aquele papinho de que quer ter uma conversa comigo.

O humor, por fim, é “um dom raro e precioso, e muitas [pessoas] sequer dispõem da capacidade de fruir o prazer humorístico que lhes é apresentado”.

Fico triste por elas.

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Se você gosta desse assunto e quer ouvir uma conversa pra lá de cativante a respeito, veja esse bate-papo entre o psicanalista Abrão Slavutzky e o cartunista Pacha Urbano:

O vídeo faz parte da programação do Litercultura 2021, que dedicou suas 4 conversas ao tema do humor. Dá uma olhada em tudo:

https://www.youtube.com/channel/UCtMrX7hU8ixMfJ5kHiY7TsA

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