Um meio elogio para Ratinho Jr.

Governador quase acertou com lei sobre identificação de tubarões vendidos sob o nome de cação. Mas faltou um detalhe

“Mas se há governo, sou contra”. Eu na verdade não sei quem disse essa frase, mas a repito com frequência, em especial quando se trata do governo da capital e do Paraná. Não é uma questão de implicância, vejo como cidadania. E para provar, vou fazer um elogio ao governador Ratinho Jr. (apodo político dos mais ridículos, diga-se de passagem). Bom, na verdade um meio elogio: é óbvio que a sua propaganda foi melhor que a realidade também neste caso. Enfim, sem mais delongas: obrigado Sr. Governador pela consideração com os tubarões do Paraná, que ainda não tinham entrado na história, mas serão o assunto da coluna de hoje.

A lei estadual 21.324/2022 sancionada em dezembro de 2022, estabelece que supermercados, peixarias, restaurantes e estabelecimentos comerciais em geral devem fazer a identificação adequada das espécies de tubarão e raia que são comercializadas com o nome popular de cação. Sim, cação não é uma espécie de peixe, é um aportuguesamento da palavra cazón, do espanhol europeu e serve para generalizar uma alta gama de espécies de peixes que incluem majoritariamente tubarões e raias.

Não é coincidência que a definição da palavra venha do país ibérico, a Espanha é hoje a nação que mais exporta carne de cação. Já o nosso Brasil é o maior consumidor deste gênero no mundo e também seu maior importador. Mas afinal, o que faria alguém muito pouco afeito à conservação do meio ambiente sancionar uma lei como esta? Qual é a importância da pesca deste injustiçado peixe para o nosso meio ambiente, nossa saúde e o equilíbrio da nossa fauna marinha? As razões do Governador vão continuar uma incógnita para mim, mas ao menos a lei está aí, é importante e deveria ser cumprida.

Para falar sobre as complexidades da pesca dos tubarões que justifiquem a ampliação do seu arcabouço jurídico, conversei com o oceanógrafo pela UFPR e mestre em Aquicultura e Pesca pelo Instituto de Pesca-SP, Felippe Veneziani Abbatepaulo. “De modo geral, tubarões e arraias são considerados predadores de topo (da cadeia alimentar). Em termos numéricos, estes animais terão uma população menor que os outros animais de níveis abaixo. Na ecologia, há um tipo de controle biológico que é o controle “top-down”: se você tirar um predador de topo, um nível logo abaixo dele vai aumentar porque diminui a predação, e o nível subsequente vai diminuir, porque aumentou demais o número de seus consumidores, mexendo no equilíbrio da cadeia como um todo. O reequilíbrio chega, porém, às vezes, o meio de se alcançá-lo são perdas populacionais de espécies inteiras”, me explica o oceanógrafo.

Outra razão que pode gerar preocupação é sobre a extinção dos próprios tubarões. “No Paraná, a pesca de cação ocorre principalmente associada às pescas de mar e redes de espera e no verão ocorre uma concentração maior de capturas de algumas espécies em risco de extinção em função daqui serem áreas de berçário. O tubarão tigre é visto no verão sendo capturado pelos pescadores com 40, 80 cm, filhotes ainda, essa é uma espécie que vai chegar a ter de 3 a 4 metros de comprimento. No inverno se pesca muito linguado, que é uma pesca de mar e de fundo, também acaba vindo bastante cação, alguns bichos já vêm mortos, porque uma grande quantidade de tubarões não têm a capacidade de respirar parados, presos as redes”, conclui Felippe.

A carne de cação é apreciada por alguns motivos, o maior e mais tacanho deles, é a falta de “espinhos” e alguns folclores gastronômicos, como a adequação de sua carne para essa ou aquela receita. No entanto, o consumo de cação, pode ser prejudicial à saúde. “Passaram a chamar comercialmente de cação essas tantas espécies, mas você não sabe direito o que é, se é um tubarão filhote, uma arraia, que tipo de tubarão, nada. Esses animais vão ter diferentes hábitos alimentares e podem estar mais associado a um risco maior ou menor de contaminação por metais pesados, dependendo de onde ele habita. O consumidor pode estar consumindo um bicho que apresenta riscos potenciais à saúde e você, não tendo essa confirmação, fica refém da sorte em saber se está consumindo algo mais ou menos contaminado”, completa o oceanógrafo.

Não que seja novidade estarmos consumindo alimentos que fazem mal à saúde, a verdade é que a maioria da população não liga – ou não pode ligar por conta de fatores econômicos – para aquilo que consome. No entanto, e para citar um exemplo, em 2021, a prefeitura de São Paulo anunciou a compra de 650 toneladas de cação em cubos e sem pele para as escolas da rede municipal. Porém, acertadamente, a comoção de ativistas da sociedade civil e pesquisadores, fez com que a prefeitura cancelasse o certame, que punha em risco o contato de milhões de crianças a metais pesados como o mercúrio e o chumbo.

Já nos longínquos anos 90, uma pesquisa executada em mercados populares de São Paulo, nos alertava para o fato de que 54% da carne de tubarão vendida continha mercúrio em níveis acima do máximo considerado pela legislação brasileira, que é de um miligrama por quilo. A OMS recomenda somente a metade dessa concentração. Some-se agora as práticas homicidas de garimpo ilegal que explodiram nos últimos anos, as altas nas práticas que causam poluição de estuários, rios e mares e imaginemos que concentrações de metais pesados podemos estar falando para a carne de cação nos dias de hoje.

Por falar em pesquisa, a falta de rótulo adequado também traz outros problemas, “do ponto de vista de pesquisa e gestão pesqueira, você informar um nome genérico, é tratar dezenas, às vezes, até centenas de espécies, dentro de uma mesma conta, inviabilizando qualquer tipo de monitoramento pesqueiro, como por exemplos, aqueles para você ter ideia dos declínios e colapsos populacionais e risco de extinções de espécies”, nos conta, Felippe. Portanto, a correta classificação de algo aparentemente tão inócuo tem implicações ramificadas em diversos extratos sociais, de meio ambiente e até políticas públicas, justificando-se a nova legislação.

Todavia, “foi uma lei feita de cima para baixo, não houve um trabalho de conscientização da população”, diz o oceanógrafo entrevistado. E assim segue-se a marca brasileira, e do governo Ratinho, de não se dar a devida importância à educação e à informação. A lei dava 120 dias do ato de sua promulgação para que vendedores e toda a cadeia se adaptasse; porém, infelizmente, quase nenhum posto de venda tenha cumprido a nova determinação jurídica. Seguimos incorrendo nos mesmos riscos anteriores à promulgação, sem colher nenhum efeito benéfico prático decorrente da lei. Querem que eu fique elogiando o Rato, mas assim fica difícil!

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