Setembro verde e amarelo: um país que mata a si mesmo

Chama a atenção a distribuição desigual das mortes ocasionadas por ação policial

Setembro é o mês em que, desde 2015, se realizam ações de prevenção ao suicídio e valorização da vida, o chamado Setembro Amarelo. Setembro é também o mês em que se comemora a independência do Brasil em relação a Portugal. Por fim, setembro foi o mês em que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública lançou seu Anuário Brasileiro de Segurança Pública, com dados de 2018 sobre a distribuição da violência no país. Homicídios, violência sexual, roubos, latrocínios: o anuário, que conta com análises de teóricas e teóricos de referência em diversas áreas, é o retrato de um país que ainda confunde segurança com violência. Os número nos revelam um país que mata a si mesmo.

Um dos primeiros dados que chama a atenção é a distribuição absolutamente desigual das mortes ocasionadas por ação policial. Onze em cada 100 mortes intencionais foram causadas por agentes de segurança pública, gerando um saldo de 6.222 vítimas. Destas, mais de 99% eram homens, sendo perto de três quartos desse total homens negros e jovens. O que desponta é um aumento de quase 20% em relação a 2017, um quinto a mais portanto. A letalidade policial brasileira é apontada igualmente pelo Estudo Global de Homicídios da UNODC, o Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime, documento que indica que, em números absolutos, os homicídios do Brasil e da Nigéria somados correspondem a 5% das mortes intencionais no mundo, inclusive levando em conta países em guerra.

A polícia também morre, tanto em serviço quanto fora, mas em patamares bastante inferiores aos de mortes causadas por policiais. Segundo o Anuário, três em cada quatro policiais mortos em 2018 foram assassinados fora do horário de serviço, totalizando 256 vítimas. Mas o mais assustador é o dado que indica que mais policiais morrem em decorrência de suicídio do que em serviço: 104 mortes no ano passado, uma a cada três dias praticamente. Isso indica que a cada cinco policiais mortos, um puxa o gatilho contra si mesmo. Em uma das profissões mais perigosas que existe, o fato de um número tão significativo das mortes ser fruto de suicídio deveria sinalizar urgência na transformação do modelo de segurança pública.

O documento do Fórum de Segurança Pública também traz dados impactantes sobre feminicídio e estupro. No caso da morte de mulheres em decorrência de questões de gênero, quase nove em cada dez das vítimas teve um companheiro ou ex-companheiro como algoz. Em um universo de pouco mais de mil mulheres mortas por feminicídio em 2018, mulheres negras encontram-se sobre-representadas, contabilizando 60% das vítimas. Quanto à violência sexual, o país registrou um crescimento de 4,1% das notificações de estupro em relação a 2017, somando 66.041 casos em 2018, o maior número já registrado na história. 80% das vítimas são mulheres, e um pouco mais do que a metade do total de vítimas tinham até 13 anos. O Brasil contabiliza, portanto, 180 estupros por dia, isso sem que se considere a subnotificação, ou seja, os casos em que, mesmo havendo crime, não se aciona nenhuma autoridade

Será falta de punição? Apesar de possuir uma das maiores populações carcerárias do mundo, o sistema prisional brasileiro atualmente contribui para o incremento da violência. Os dados indicam que situação das prisões segue estagnada desde 2000, com um déficit estável de vagas de 212%, o que na prática significa que o sistema prisional possui, há quase duas décadas, mais que o triplo de presos em relação à sua capacidade, com mais de um terço desses presos sequer tendo passado por julgamento. Motivo de rebeliões, fugas e de um ambiente propício para a ilegalidades e violências, a superlotação e precariedade transformam o cárcere em um sistema de adoecimento individual e coletivo ainda mais intenso, incrementando o ódio de uma nação contra si mesma e criando seus próprios monstros.

Uma novidade da publicação anual do FSP são dados em relação às mortes intencionais da população LGBT. Tais crimes de ódio contabilizaram 420 vítimas em 2018. Em sua análise dos números do anuário, o jurista e professor de Direitos Humanos Thiago Amparo aponta para a gravidade do fato de apenas três estados da federação possuírem uma delegacia especializada em crimes contra pessoas LGBT. O professor indica ainda que há muita subnotificação de tais violências, pois não se leva em conta formas de agressão como estupros corretivos, além do acesso precário à Segurança Pública que pessoas LGBT, e em especial pessoas trans, possuem. Muitas vezes, notificar a violência para uma autoridade policial é, em si, um processo tão violento, que é preferível sofrer caladx.

Um país perigoso, e mais perigoso ainda ser negro, mulher, LGBT, criança. Um país onde policiais, que deveriam ser as pessoas mais preparadas para lidar com a violência, muitas vezes são algozes e vítimas da própria violência. Um país que ainda aposta profundamente em táticas de militarização da Segurança Pública cidadã, policiamento ostensivo, treinamentos humilhantes e assim por diante. O Brasil está ainda muito longe de declarar sua independência do autoritarismo presente nas casas e nas ruas, da violência patriarcal e branca que orienta um projeto de nação onde nem todas as cores são bem vindas.

Se fosse uma pessoa, nossa nação seria um paciente em franco comportamento suicida, aniquilando grande parte de si mesmo a conta-gotas enquanto empobrece cada vez mais áreas de promoção da vida, como a Saúde e a Educação. O que Anuário revela não é novo, mas permanece urgente: neste Setembro Amarelo a valorização da vida precisa ir além da compulsão pelo homicídio como recurso de proteção do status quo econômico e social. “Independência ou morte” parece soar estranhamente atual nesse contexto.

Vale saber mais aqui:

Anuário Brasileiro de Segurança Pública do Fórum Brasileiro de Segurança Pública – http://www.forumseguranca.org.br/publicacoes/13-anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/

Global Study on Homicide da UNODC – https://www.unodc.org/unodc/en/data-and-analysis/global-study-on-homicide.html

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