Tolerar o intolerante? Uma reflexão a partir do aviso e do precedente

As ocorrências neonazistas e antissemitas cresceram de maneira contínua sob o governo do ex-Presidente Jair Bolsonaro. Como devemos agir?

De acordo com a jornalista Mônica Bergamo, na sua coluna na Folha de S. Paulo de 28 de abril de 2023, os atos neonazistas em escolas no país subiram 270% nos últimos três anos. Os dados são do Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil. Outra pesquisa de grande destaque sobre o assunto é da antropóloga Adriana Dias, falecida no início deste ano, com experiência na investigação do tema desde 2002. Em levantamento, divulgado pelo Fantástico em janeiro de 2021, ela mostrou que existem pelo menos 530 núcleos extremistas de teor neonazista no Brasil, um universo que pode chegar a 10 mil pessoas. Há dois anos,o número de grupos e de atos neonazistas já demonstrava um crescimento expressivo, mas Dias apontou ainda que esses núcleos se concentravam na região Sul do Brasil e, posteriormente, se espalharam para as cinco regiões do país.

As ocorrências neonazistas e antissemitas cresceram de maneira contínua sob o governo do ex-Presidente Jair Bolsonaro. Somente o ano de 2022 concentrou mais de 50% do total desses episódios de violações registradas no país desde 2019. Também é relevante explicitar que, embora os episódios envolvendo violência física representem menos de 10% dos casos, houve um aumento de 67% de agressões em um período de apenas um ano – 2021 e 2022.

As democracias da Europa Ocidental e os EUA têm abordagens opostas à questão da tolerância ao discurso de ódio. A maioria das nações da Europa Ocidental impõe penalidades legais à circulação de materiais políticos extremamente intolerantes ou marginais, tomando em consideração a sua inadequação social e a sua incitação à violência. Já os EUA determinaram que tais materiais são protegidos por si mesmos pelo princípio da liberdade de expressão e, portanto, imunes a restrições. A exceção norte-americana se aplica quando há um apelo à violência ou a outras atividades ilegais de modo direto e explícito.

No Brasil, a Lei do Racismo (nº 7.716/89) estabelece que é crime no Brasil “fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo”, sob pena de dois a cinco anos de prisão e multa. Apenas em 1994 e 1997 foram incluídas as referências explícitas ao nazismo, por projetos de lei apresentados por Alberto Goldman e Paulo Paim. Diferentemente dos Estados Unidos, em solo brasileiro o direito à liberdade de expressão não engloba a apologia do nazismo. Essa questão, inclusive, já foi decidida pelo Supremo Tribunal Federal em 2003, num julgamento considerado histórico e que ficou conhecido como caso Ellwanger.

A quantidade de eventos sociais dos últimos anos com conotações neonazistas ou antissemitas, em especial as ocorrências que em 2023 acabaram por culminar em ataques violentos à escolas – que podemos chamar de “desagregadores”, posto que tensionam o tecido já razoavelmente constituído da sociedade brasileira dos últimos anos – nos obriga à reflexão: até que ponto é razoável tolerarmos esses eventos, esses discursos e as suas utilizações?

Karl Popper (1902-1994), na sua obra intitulada “A sociedade aberta e seus inimigos”, se propõe a argumentar a favor de uma sociedade que valoriza a liberdade, a tolerância e o respeito pelos direitos individuais. O filósofo austríaco tece, no seu texto, duras críticas ao marxismo e ao nazismo, além de apontar, em Platão, a origem de um pensamento político elitista e hierárquico da sociedade que influenciou o pensamento ocidental como um todo.

Popper era de família judia convertida ao luteranismo. Acompanhou de perto o movimento socialista na Áustria, como também o Círculo de Viena, cujo fundador, Moritz Shlick, morreu assassinado no contexto da ascensão do nazifascismo em Viena. O livro em questão pode ser tomado como um esforço de guerra do filósofo, concluído em 1944, em Christchurch, na Nova Zelândia.

Por meio da sua análise de textos platônicos, como A República, Popper nos traz três paradoxos importantes. O primeiro deles, o paradoxo da democracia, surge do argumento de que, dentro de um governo democrático, a maioria é capaz de escolher, exercendo livremente o seu direito, um tirano. Isto é, o meio que permite a escolha livre, permite também o fim do próprio meio de escolha. O governo democrático seria, assim, capaz de legitimar uma tirania. Por isso, para Platão, a democracia seria imperfeita. Trata-se de uma formulação parecida do argumento que sustenta o paradoxo da liberdade. Neste segundo paradoxo, argumenta-se que a liberdade irrestrita levaria a sociedade a um estado de violência extrema praticada por uma minoria e que isso, portanto, tolheria a liberdade da maioria. A liberdade irrestrita levaria, assim, a um estado de escravidão. Novamente, temos o exercício de um direito levando ao seu próprio extermínio.

O terceiro paradoxo talvez seja o mais famoso, posto que tem sido popularizado em memes na internet nos últimos anos. É o paradoxo que trata da tolerância. Similarmente aos anteriores, ele parte do argumento de que uma tolerância excessiva tende a anular a própria existência da tolerância, posto que isso aumenta a intolerância. Tolerar, sem critérios, os intolerantes, leva ao extermínio e à supressão dos tolerantes, tendo em vista que estes intolerantes muito provavelmente lançarão mão da coerção e da violência para impor as suas vontades.

Uma das críticas de Popper à teoria política de Platão é a sua confusão entre coletivismo e altruísmo. A resposta de Popper, muito influenciada também pela sua própria teoria epistemológica, é a substituição da questão “quem deve governar?” por “como poderemos organizar as instituições políticas de modo tal que maus ou incompetentes governantes sejam impedidos de causar demasiado dano?”. Se considerarmos como legítima a resposta para a primeira pergunta, estamos fadados a respostas como “o mais sábio”, “o mais inteligente”, “o bom”. Estamos, assim, legitimando sem querer o autoritarismo. Isso não acontece se admitirmos a segunda questão, que possui um fundo explicitamente pessimista. Tomar de antemão que os governantes são falhos é um ponto de partida muito mais complexo e que demanda um eterno esforço social para manter a paz, a igualdade e a liberdade.

Dessa maneira, o paradoxo da tolerância emerge no contexto de uma sociedade que, em princípio, é caracterizada por sua disposição em aceitar e conviver com uma ampla gama de opiniões. No entanto, essa sociedade tolerante se depara com um dilema quando grupos extremistas e intolerantes, apesar de contrariarem seus próprios valores, são permitidos a existir dentro de seus limites. A preocupação subjacente reside no fato de que, caso esses grupos obtenham poder e influência, eles poderiam instrumentalizar sua posição para reprimir a liberdade e os direitos das pessoas que divergem de suas visões.

Karl Popper, ao abordar esse paradoxo, sustenta que, a fim de salvaguardar a continuidade de uma sociedade verdadeiramente tolerante, é necessário adotar uma postura de intolerância em relação àqueles que procuram suprimir a liberdade e a tolerância. Em outras palavras, embora a liberdade de expressão e os direitos individuais sejam princípios fundamentais, eles também devem ter limites definidos quando passam do âmbito da argumentação livre para a simples disseminação de mensagens de ódio, de discriminação e de violência contra outros membros da sociedade. Apesar desse limite ser complicado de traçar, Popper enfatiza que, embora a liberdade de expressão seja de grande importância, ela não pode ser considerada absoluta e deve ser cuidadosamente equilibrada com o respeito aos direitos e à dignidade de todas as pessoas.

Democracia, liberdade e tolerância são talvez os temas mais importantes que afetam a sociedade brasileira hoje. O exercício do poder demanda controle. O estabelecimento de instituições é necessário, assim como o de uma cultura que garanta a existência de uma sociedade livre de qualquer forma de autoritarismo. A democracia possui os seus defeitos e não está livre de contradições.

O Holocausto, nas últimas décadas, se tornou um símbolo para genocídio, racismo, xenofobia e, claro, para o antissemitismo. Para o historiador Yehuda Bauer, o combate ao nazismo e ao antissemitismo deve se estabelecer por meio de uma cooperação internacional para educar o maior número de pessoas possível: “para advertir e ao mesmo tempo fornecer uma esperança realista para uma possível mudança de direção das questões humanas”. Com isso, podemos dizer que Bauer compartilha do pessimismo popperiano. Para ele, o Holocausto deve ser incorporado pela vida, no presente e no futuro, para dar à realidade um significado que ela não tinha quando aconteceu. Um significado que está intimamente amalgamado com os de paz, democracia e liberdade.

Para o historiador, a sociedade precisa dos políticos para que o esforço educacional se cumpra. É preciso instruir as pessoas que nos países democráticos são eleitas para lidarem com assuntos mais banais, como impostos e gastos públicos, para que conheçam o que é genocídio, o que foi o Holocausto, as suas consequências e as suas circunstâncias. Trata-se, segundo o autor, de um longo processo cuja “realização não é garantida”. É um processo de aprendizado importante que deve englobar toda a sociedade, tanto crianças como adultos.

“Qualquer evento histórico é uma possibilidade antes de se tornar um fato, mas quando se torna um fato, serve também como um possível precedente”. Bauer argumenta que, apesar de nenhum evento se repetir exatamente da mesma maneira, se ele for seguido por eventos semelhantes, ele será o primeiro de uma série de eventos semelhantes. O Holocausto pode ser um precedente, ou pode se tornar um aviso. Da mesma maneira “[…] devemos fazer tudo ao nosso alcance para garantir que seja um aviso, não um precedente.”

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