Em busca do específico universal

Então, para que a memória do Holocausto é necessária? Em que situações o conhecimento acumulado sobre nazismo e Holocausto nos fornece ferramentas particulares? Ou, em outras palavras, o que há de específico no Holocausto que nos sirva universalmente?

Falar sobre qualquer tema histórico implica em fazer escolhas: O que queremos dizer? O que ficará de fora? Quais aspectos realçaremos? Essas perguntas, no entanto, dependem de outras. Por que falamos? O que pretendemos alcançar com isso?

Existem múltiplas possibilidades de resposta. As propostas educativas mais modernas sobre o Holocausto têm optado por uma abordagem universalizante e com relações com o presente. Ou seja, tomamos o Holocausto como um caso paradigmático não somente para falar de nazistas, judeus e outras pessoas envolvidas, seja como perpetradores, vítimas ou observadores, mas para falar do presente, em 2023, Brasil, Curitiba.

Há, porém, armadilhas nesse processo. A monstruosidade do Holocausto pode tornar seus perpetradores uma metonímia do mal. Nesse caso, ao invés de usar o que sabemos sobre nazismo e Holocausto para melhor compreender aspectos da realidade presente, o nazismo se torna somente um insulto para aquilo do qual não gostamos. E aí buscamos no Holocausto explicações para tudo o que achamos de ruim no mundo. E, se o conhecimento acumulado sobre nazismo e Holocausto pode nos auxiliar a entender diversas mazelas contemporâneas, em várias outras situações este não é o caso ou o Holocausto não se mostra o exemplo mais adequado – afinal, infelizmente, a história é pródiga em catástrofes, violências e opressões.

Então, para que a memória do Holocausto é necessária? Em que situações o conhecimento acumulado sobre nazismo e Holocausto nos fornece ferramentas particulares? Ou, em outras palavras, o que há de específico no Holocausto que nos sirva universalmente?

A resposta a essa questão irá, de fato, depender de cada contexto. Mas elenco a seguir três temas para os quais acredito que o conhecimento específico sobre Holocausto (e sobre seus perpetradores, os nazistas) pode iluminar a compreensão sobre o presente.

Genocídio

Evidentemente, o Holocausto não foi o único, nem o primeiro ou o último genocídio da história da humanidade. Porém, se tornou um caso paradigmático, tanto é que uma das decorrências das primeiras políticas de memória do Holocausto foi a “Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio”, adotada pela ONU em 1948.

Esse documento nasceu da necessidade de estabelecer uma definição genérica, aplicável a outros casos, do que ocorrera na Europa durante a 2a Guerra Mundial. Estava evidente que as tipificações criminais já existentes não eram suficientes.

Os estudos sobre Holocausto foram fundamentais para alargar a compreensão sobre o processo genocidário, observando temas como as fases anteriores ao extermínio propriamente dito ou o negacionismo, que, no Holocausto como em outros genocídios, se inicia ainda durante o processo genocidário.

Assim, entender o Holocausto segue sendo fundamental para analisar situações que configurem ou possam configurar genocídio. Mais do que isso, são importantes inclusive para aprimorar a definição e seus julgamentos internacionais, sobretudo para pensar em temas como responsabilização social, reparação e reconciliação.

Antissemitismo

Outro tema ao qual o Holocausto nos dá acesso especial é o antissemitismo. É claro que o ódio a judeus não foi inventado pelos nazistas, mas estes não somente o elevaram a outro patamar – tanto de violência como de centralidade no projeto político -, como permitem observar a síntese de uma série de especificidades do antissemitismo.

Por um lado, o nazismo demonstra como histórias de opressões de cruzam. O antissemitismo nazista não é mera continuidade do antissemitismo religioso medieval. Ele conjuga esse imaginário com teorias raciais pseudocientíficas desenvolvidas sobretudo no contexto do colonialismo europeu na África. Não é possível entender a emergência do nazismo sem o colonialismo. Essa trajetória das ideias aponta para pensarmos nos vínculos que diferentes formas de opressão estabelecem entre si.

Por outro lado, o nazismo também evidencia aquela que é talvez a característica mais particular do antissemitismo: o conspiracionismo. Os judeus, para os nazistas, não eram inferiores no sentido de poderem ser explorados e descartados, mas sim uma unidade perigosa e poderosa, com uma agenda oculta para a qual toda a diversidade de judeus que há no mundo não passaria de uma máscara. Para o nazismo, os judeus deveriam ser eliminados não por serem desobedientes ou um obstáculo ao avanço nazista, mas por serem, supostamente, uma ameaça. Controladores da mídia, dos governos e das corporações, os judeus imaginados deveriam ser parados e, tão poderosos, o único meio para isso seria seu extermínio. O genocídio seria, para os nazistas, a forma de salvar a raça ariana, antagonista dos judeus.

Estudar o nazismo e o Holocausto é, assim, muito importante para um letramento anti-antissemita, ou seja, uma compreensão dos mecanismos do antissemitismo para, com mais eficácia, identificá-lo e combatê-lo.

Fascismo

Um terceiro elemento específico que sabemos sobre o Holocausto que pode iluminar o presente é o próprio nazismo, analisando-o dentro da ascensão dos movimentos fascistas da Europa entre as duas guerras mundiais.

Os fascismos foram uma inovação a sua época, por juntarem uma visão de mundo de extrema direita, racista, ultranacionalista e autoritária, e simultaneamente com uma base popular, a qual era instada a não somente aceitar, mas a ativamente apoiar o regime. Os fascismos partiram de elementos ideológicos e estratégias políticas que circulavam na época, mas que só podiam se conjugar no período após 1a Guerra Mundial e em sociedades nas quais a conquista do direito à participação política popular era um fato consolidado.

Essa terceira especificidade do Holocausto nos lembra que, para que o genocídio se tornasse possível, não bastava haver grande número de apoiadores de um antissemitismo violento (que, aliás, havia – até em maior número – em outros países europeus que não a Alemanha), mas que este se tornasse elemento central da política de Estado.

Os fascismos são um fenômeno histórico localizado temporalmente. Mas, os conceitos e análises que elaboramos para compreendê-los são muito importantes para estarmos atentos e compreender criticamente o que Roger Griffin chama de “ultranacionalismo palingenético”, ou seja, formas extremas de nacionalismo que creem que existe uma essência atemporal da nação que deve ser salva ou regenerada de terríveis ameaças por um movimento que una a nação e seja capaz de fazer frente, inclusive pela força, a essa ameaça imaginada.

As mensagens universais que podemos extrair da memória e da educação sobre a Shoá não somente não são incompatíveis com a busca pelas particularidades do Holocausto, como necessitam delas. Para que seja relevante e ética nos dias de hoje, a memória do Holocausto não pode retratar esses acontecimentos históricos como somente mais uma dentre outras expressões de fenômenos genéricos, mas precisa buscar as especificidades que justifiquem seu uso educativo. Em relação aos objetivos pretendidos – retomando a reflexão que abriu esse artigo – é que é preciso pensar a Shoá como um evento que diz respeito não somente aos personagens diretamente envolvidos (ou seus descendentes), mas à humanidade.

Os três elementos analisados aqui – aos quais outros podem certamente se somar – visam participar desse esforço. Afinal, não é o passado por si só que pode nos trazer lições, mas a forma como o narramos e lhe damos sentido no presente.

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