Lugar de mulher é onde ela quiser

No pódio havia uma mulher. À frente do palco, no lugar de maior destaque, havia outra mulher. Juntas, elas estavam realizando a peça de outra mulher

Na semana passada, tive o prazer de assistir virtualmente um concerto da Orquestra Filarmônica de Buenos Aires. A ocasião, para mim, era bastante especial. Uma grande amiga estava à frente da orquestra, e fez um belíssimo concerto com a OFBA. Me orgulha muito perceber mulheres brasileiras alçando voos. Ainda mais, porque a maestrina Natália Larangeira voou, e levou consigo outras mulheres. 

O concerto teve características, infelizmente, atípicas. Porém, ao meu ver, exemplares. 2/3 do repertório eram compostos por compositoras vivas. O programa consistia em: Música para arcos, de Hilda Dianda, Introitus para piano e orquestra de câmara, de Sofia Gubaidulina e a Serenata n.º 2, de Johannes Brahms.

Hoje quero dedicar essa coluna a performance que assisti de Introitus e a genialidade de Gubaidulina. Fiquei profundamente tocada por sua música e gostaria de dividir minhas impressões.

Em outubro deste ano Gubaidulina completou 90 anos. A compositora russa viveu muitas transformações históricas até aqui. Durante o início de seus estudos musicais, a Rússia sofria uma grave censura, então, toda a música contemporânea que acontecia no resto do mundo a chegava às escondidas. Sua música foi considerada “irresponsável” durante o período soviético. A compositora explorava afinações alternativas e isso não era bem visto. Porém, resistiu.

Não só resistiu, como alcançou fama internacional. Sua música, que tem um caráter transcendental, superou qualquer amarra que a tenham tentado impor. O som de Gubaidulina tem sua própria agência, e me comoveu muito a composição mencionada acima.

Introitus inicia com um solo de flauta carregado de características orientais. Este começo me soa como um convite a uma audição meditativa e atenciosa. Lembro de começar a ouvir e pensar: que bonito. Mas não é uma beleza simples. O belo ali carrega consigo diversas dissonâncias e possíveis estranhezas, que ao meu ver, enriquecem nossa curiosidade.

Natália Larangeira (à esquerda) regeu concerto da Orquestra Filarmônica de Buenos Aires . Foto: arquivo pessoal de Natália Larangeira.

E a medida que o tempo passava, eu tentava entrar cada vez mais naquele som cheio de nuances. De olhos fechados eu me sentia carregada pela música. Mas que grata surpresa tive ao abrir os olhos, quando ouvi o piano soando pela primeira vez. Na tela da minha TV estava Marcela Roggeri. Eu não conhecia a pianista. Então, dali pra frente, preferi manter os olhos abertos, porque é sempre impressionante, ainda mais num close, ver a habilidade das mãos de uma profissional.

Eu não sei descrever muito bem o que houve comigo. Fiquei achando tudo muito emocionante, fui levada por toda a cena musical, e é uma pena que fosse só na minha TV. Mas, fato é que, num determinado momento eu parei e percebi: no pódio havia uma mulher. À frente do palco, no lugar de maior destaque, havia outra mulher. Juntas elas estavam realizando a peça de outra mulher. Pensei em tudo que cada uma viveu para estar ali. Gubaidulina é tão grande que está entre nós imaterialmente, em sua música. Natália Larangeira e Marcela Roggeri interpretaram alguém que, mesmo de maneira indireta, contribuiu para que elas pudessem estar onde estavam.

Parece que, ao me dar conta do que acontecia, tudo ganhou uma força expressiva muito maior. A soma da música, da interpretação e das presenças me deixou orgulhosa de viver em um mundo onde isso é possível. E agradeço a todas que tornaram isso possível. Afinal, essa cena é ainda tão incomum, que me comove de maneira a querer vir aqui e dividir.

Infelizmente, a performance não ficou disponível para ser assistida posteriormente. Mas procure pelo trabalho de Sofia, Natália e Marcela. As três são grandes musicistas e mulheres. Conhece-las é, para mim, um privilégio. Ouvi-las nos fará ter suas presenças como algo familiar. É preciso tornar cotidiana a presença da mulher aonde ela quiser.

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