Precisamos falar sobre a Cibele

Cibele tem sonhos como toda menina de sua idade. Mas essa sem-terrinha perdeu o lugar onde morava e hoje é um símbolo das mazelas do nosso país

Era manhã do dia 8 de novembro de 2019. Não passava das 10h, quando cheguei na cidade de Alvorada do Sul e avistei um aglomerado de pessoas que se reuniam na beira da estrada. Estavam à minha espera.

Barracos de lona preta se espalhavam pelo local, denunciando que ali, à beira da estrada, era o local onde aquelas pessoas estavam vivendo. Eram homens, mulheres, crianças e idosos que, dois antes, tinham sido despejados da terra que ocupavam há mais de 10 anos e foram deixados às margens da estrada existente nas imediações. Eram o produto da desocupação forçada que, assim como os rejeitos domésticos, estavam embalados em plástico preto à espera de um destino.

Desci do carro e fui me aproximando, não sem antes notar um certo ar de desconfiança e apreensão que, reconheço, era recíproco.

De repente, dentre as tantas pessoas que ali se encontravam, ouve-se a voz de uma criança. Uma menina de pouco mais de três anos de idade. Descalça, vestia um calçãozinho vermelho que combinava com a camiseta surrada. Seu rosto estava sujo e seu cabelo alvoroçado pelos dias de lama e poeira passados debaixo do barraco de lona. Era pequena.

Ela se aproximou de mim, postou os braços ao lado do corpo, baixou a cabeça e fez um dos depoimentos mais pungentes e significativos que ouvi nos meus mais de 30 anos de profissão. Aquela menina franzina, ainda na primeira infância, tomou o tamanho de um gigante ao relatar sua história.

Junto com seu pai e sua mãe, foi despejada da casa onde nasceu. Sem entender os motivos que a levaram para a beira da estrada, não lamentou por si. Pediu pelo seu jegue, reclamou da casa que foi derrubada, do pé de maracujá que foi destruído, dos moranguinhos que foram arrancados e da sua camiseta do “Basil” que tinha ficado “lá no sem-terra”.

Era a Cibele. Uma sem-terrinha que, aos três anos de idade, já experimentava a violência que permeia os conflitos fundiários.

Aos três anos de idade, aquela garota já tinha experimentado o peso da desigualdade.

Passados dois anos, as famílias que ainda viviam em condições precárias, sabendo que a área de onde tinham sido despejadas não foi ocupada, retornaram e, lá, depois de reconstruir suas casas, refazer suas plantações e iniciar a criação de pequenos animais, aguardam uma solução que permita uma vida digna.

Cibele, hoje com 8 anos de idade, frequenta o ensino fundamental. Quando chove, não vai à escola, pois as estradas de acesso são precárias e o barro impede o trânsito de veículos.

Não está alfabetizada ainda. Lê com alguma dificuldade. Pouco escreve, mas adora ir à escola.

Cibele não tem uma moradia adequada. Abriga-se, junto com sua família, numa construção improvisada de um cômodo, sem banheiro, sem luz elétrica ou água encanada. Cibele está constantemente acometida de doenças gastrointestinais, fruto da ausência de saneamento básico.

Cibele tem sonhos comuns de outras meninas de sua idade. Gosta de fantasia de princesas e de roupas cor-de-rosa. Mas tem desafios inimagináveis para poder ter uma infância digna.

E é por tudo isso, por tudo o que Cibele e outras crianças como ela passam, é que devemos falar a respeito.

Vivemos num estado constitucional, pautado em texto normativo que pretende assegurar direitos fundamentais a todo ser humano.

Diz lá, na nossa Constituição (art. 3º) que os objetivos fundamentais da República do Brasil são, entre outros não menos importantes, constituir sociedade livre, justa e solidária e, também, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.

Nada mais justo e legítimo.

A Cibele tem muito pouco daquilo que o Estado brasileiro se obrigou a garantir como diretos fundamentais e, dadas as circunstâncias atuais, certamente seguirá negligenciada.

Ora, qual o futuro dela? O que esperar dessa sem-terrinha que tem acesso precário a ensino, a saneamento básico, a moradia digna?

Em que condições a sociedade vai recepcioná-la? E o mercado de trabalho? Quais as oportunidades que ela terá?

Haverá muita gente lúcida, instruída, culta e com proeminência na sociedade que afirmará, com certo ar de autoridade, que com esforço sobre-humano e superando as dificuldades de uma vida de privações e de indignidades, ela conseguirá. Terá seu mérito! O drama da Cibele estará, assim, resolvido e não há mais razões para falar a respeito.

Ora, falar sobre as condições em que a Cibele vive e, assim como ela, outras tantas milhares de crianças, incomoda. Causa desconforto. Alguns engasgam, outros desconversam. Muitos lamentam, se compadecem e no minuto seguinte, fazem questão de esquecer.

A despeito desse incômodo, da omissão e do compadecimento temporário, o fato é que a sociedade precisa construir alternativas viáveis para situações semelhantes às experimentadas pela Cibele. E essa construção há de ser, necessariamente, fruto de um debate amplo, que envolva toda a sociedade civil, justamente porque todos nós temos compromissos com os objetivos fundamentais da República, tal como expresso na Constituição Federal.

Estamos no século 21 e nos entendemos como nação civilizada.

Aderimos, enquanto Estado, à agenda 20/30 da ONU, que estabelece metas para alcançarmos os objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS), entre eles, a erradicação da pobreza, moradia digna, educação de qualidade, água potável, redução das desigualdades, saúde e bem-estar.

O discurso é lindo, encanta, empolga, mas é só um discurso.

Estamos no século 21 e não somos uma nação civilizada.

Avançamos muito pouco para atingir os ODS.

Por isso urge falarmos sobre a Cibele e sobre as condições em que ela vive.

Cibele não precisa de caridade. Precisa, sim, que seus direitos sejam reconhecidos.

Cibele precisa ser compreendida no contexto em que vive, na sua luta por reaver o que lhe tiraram, na sua vontade de recuperar seu jegue e sua camiseta do Brasil.

Esse contexto compreende uma melhor distribuição de renda, a superação das desigualdades sociais, reforma agrária efetiva e que contemple famílias camponesas carentes de um simples pedaço de terra para produzir alimentos, gerar excedentes e consequentemente, alguma renda que possa lhes dar alguma dignidade.

Eventual complexidade das questões aqui postas, não pode ser considerada como obstáculo para um debate amplo, franco, sem hipocrisias ideológicas e que enfrente, objetivamente, o problema da má distribuição e concentração de renda.

Falar sobre a Cibele é falar sobre direitos fundamentais, sobre a dignidade da pessoa humana, sobre a superação das desigualdades sociais, sobre a erradicação da pobreza.

Falar sobre a Cibele é o caminho para a construir uma sociedade livre, justa e solidária.

Falar sobre a Cibele é falar sobre nós, sobre o mundo no qual vivemos, sobre nosso futuro e de nossos filhos.

Ah… Cibele recuperou seu jegue. A camiseta do “Basil”, que tinha ficado “lá no sem-terra”, lá ficou, enterrada pela violência do despejo. Outra, contudo, lhe foi presenteada. Ela a veste com orgulho pois, apesar de todas as distorções do seu significado, entende o alcance da sua importância na busca por um País melhor que lhe dê condições dignas de vida.

Colaboraram com o texto:
Fabiane Pieruccini
Juíza Auxiliar da Presidência do CNJ
Membro da Comissão Nacional de Soluções Fundiárias do CNJ

Patrícia Elache Gonçalves dos Reis
Analista Judiciária do TJPR
Secretária

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