Existe amor depois de um AVC?

Desventuras amorosas depois do AVC infelizmente são comuns em nossa comunidade, em que existem outras histórias perturbadoras que envolvem desde noivados desfeitos na “porta da igreja”, até a abusos físicos e emocionais

Tudo é difícil depois de uma lesão cerebral, inclusive manter, desenvolver e encontrar um amor. E nessa saga de medo e incertezas sempre paira a seguinte questão em nosso cérebro machucado: existe amor depois de um AVC?

O mês de junho chegou, e junto com ele aquela velha estética de mês dos namorados (Aff!). Além de azucrinar todos os solteiros, todo esse merchandising de “o amor é para todos, pena que você não tem um” mexe profundamente com os ânimos de muitos sobreviventes de AVC que foram abandonados pelos seus parceiros logo após o acidente (fué, fué, fué). Há casos em que, pasmem, as pessoas nem voltam para casa, são simplesmente “entregues” na residência dos pais, como se fossem um produto quebrado.

Desventuras amorosas depois do AVC infelizmente são comuns em nossa comunidade, em que existem outras histórias perturbadoras que envolvem desde noivados desfeitos na “porta da igreja”, até a abusos físicos e emocionais. Apesar de esses infortúnios acontecerem com ambos os sexos, inegavelmente eles se concentram nas histórias das mulheres. Em uma sociedade que valida a mulher pelo porte físico (e pela capacidade de gerar filhos), basta ela se machucar gravemente para perder o seu status, e consequentemente, quem a acompanha.

Quem teve o AVC solteiro, percebe que a situação se complicou quando “volta para a pista”, e precisa lidar com as pessoas correrem para o lado oposto assim que ouvem a palavra AVC. Sinceramente, eu não sei o que os crushes pensam, mas imagino que achem que a gente vai ter outro AVC e piorar a nossa condição, ou que estamos à procura de um cuidador. A verdade é que não queremos nem uma coisa, nem outra. Queremos apenas o que todo mundo quer: um companheiro para a vida ou uma amizade mais “caliente”, se é que você me entende.

Dentre as opções mencionadas para justificarem nossas constantes rejeições, é preciso esclarecer que ambas são horríveis. Primeiro porque nunca, em hipótese alguma, sugira para um AVCista a possibilidade de ele ter outro acidente vascular cerebral. Este trauma é tão imenso, que ouvir esta frase é pior do que xingarem a nossa mãe. E quanto ao lance do cuidador, “pelamor”, o que a gente mais quer é ter autonomia, exatamente o oposto de depender de alguém.  Além disso, a relação entre cuidador e paciente não é lá muito sedutora como os filmes hollywoodianos insistem. A realidade é bem diferente.

O fato é que se é difícil encontrar alguém para se chamar de amor atualmente, é muito mais complicado depois de um AVC. E as ciladas são constantes. Sabe aquele lance de endeusar o companheiro de uma pessoa com deficiência? Existe mesmo!  A impressão que a sociedade nos passa é de que a pessoa está fazendo um favor em estar com a gente, e se um dos envolvidos acreditar nisso, a coisa piora drasticamente. É um passo para a relação se tornar abusiva, já que daí a desigualdade impera.

Então, se você é uma pessoa que fica triste olhando aquelas inúmeras fotos de casais em suas redes sociais no Dia dos Namorados, saiba que você não é o único. Muitos sobreviventes sentem o mesmo, e com o adicional daquela cruel nostalgia de lembrar como sua situação amorosa era diferente antes do dia D. Pois bem, eu não sei se você sabe, mas muitos desses casais da internet não são tão felizes quanto parecem. Eles só estão influenciados pela propaganda e por Juno, a deusa romana cujo nome inspira o mês que estamos.

De acordo com a mitologia, Juno (também conhecida como Hera, para os gregos) era casada com Júpiter (também conhecido como Zeus no antigo mundo dos filósofos de sandálias). Só que esse cara era do tipo assanhado, e vivia “pulando a cerca” com outras deusas e mortais. Juno ficava furiosa e gastava os seus dias perseguindo o marido e meio mundo, porque se sentia insultada com o constante peso sobre sua cabeça. Dizem as más línguas romanas que a deusa nem gostava mais tanto de Júpiter diante de tantas frustrações, mas do status que ele a proporcionava. Com certeza, ela seria uma dessas pessoas que posta várias fotos de seu relacionamento no dia 12 de junho, apenas para não perder a pose.

Por uma ironia da História Clássica, Juno, além de governar os casamentos e as mulheres, representava o poder. Pena que gastava tanta energia nos outros ao invés de focar em si. Se o seu foco fosse ao contrário, ela poderia até mudar a história mitológica e governar o mundo, substituindo o seu animal de estimação: o pavão (cujas penas aparentam ser vários olhos vigilantes) por um dos seres preferidos de Júpiter: a águia (capaz de enxergar mais longe).

Esta mudança de foco (de se concentrar nos outros e voltar-se para si) é uma das primeiras lições enfrentadas pelos sobreviventes de AVC. Diante de tantas dificuldades, só podemos focar na nossa vida e em nossa recuperação. Aliás, este é justamente um fator que atrapalha nossas relações conjugais. Realmente é difícil se concentrar no outro quando temos tantas adversidades físicas e emocionais pelo caminho, e são poucos os parceiros que entendem isso.

Se é impossível ter o olhar de Juno diante de tantos desafios pessoais, a nossa situação nos apresenta uma perspectiva diferente da deusa, já que nela aprendemos que é impossível controlar o mundo, as pessoas e os caminhos da vida. E diante da impossibilidade de atrairmos pavões (com os seus mil olhos cortejadores), só somos vistos pelas águias (que enxergam muito além do preconceito).

Poucas pessoas continuam ao nosso lado depois de um AVC, somente as que realmente gostam de nós, e isso é o que chamo de amor verdadeiro. Os cônjuges, amigos e familiares que não nos abandonam nos aceitam realmente como somos e acreditam profundamente na nossa capacidade de nos recuperarmos diante dos tombos da vida. Não há prova de amor maior! E respondendo à pergunta do título deste texto: se esses amores existem após uma lesão cerebral, outros amores também são possíveis, até os que virão.

Mas, não se iluda, eles realmente são difíceis de encontrar, já que é preciso muita maturidade e honestidade para se poder ir além do status quo da perfeição. Ao mesmo tempo que o AVC nos afasta das investidas usuais, ele nos filtra das pessoas superficiais, que se assustam diante de suas ideias estapafúrdias. Esses não sabem o que perdem, já que geralmente somos muito bonitos, por dentro e por fora. Fiu! Fiu!

Depois de um AVC, nossas relações não se encaixam mais no modelo de Juno, é verdade, porém, isso não quer dizer que perdemos o nosso toque de divindade, concedida a todos os mortais. Todos nós teremos chances de amarmos e sermos amados, simplesmente por estarmos vivos e por existirem vários outros deuses no Olimpo, ou melhor dizendo… Na vida! Afinal, como dizia o saudoso Cazuza: “O amor é brega, e eu quero um!”. Quem não quer? Feliz Dia dos Namorados, meus amados!

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