Uma rebeldia reacionária?

Transformada em uma espécie de gestora da normalidade e defensora das instituições, essa esquerda perdeu seu potencial de capitalizar a indignação.

“É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”
Mark Fisher

Candidato mais votado nas primárias argentinas do último sábado – as chamadas PASO, sigla para Primarias Abiertas, Simultáneas y Obligatorias – com 30% das intenções de voto, o ultradireitista Javier Milei afirmou, em entrevista ao canal La Nación+, que as eleições foram roubadas: “Se não tivesse havido fraude, eu estaria falando de 35 pontos. Temos os estudos para provar”.

Os estudos não foram mostrados, provavelmente porque não existem, e não existem porque não houve fraude. Mas isso não importa, porque o efeito esperado não tardou a acontecer: a militância de Milei entrou em polvorosa nas redes sociais, antecipando o que pode acontecer em outubro, quando eleitoras e eleitores escolherão o novo presidente, especialmente se Milei sair das urnas derrotado.

Acusar de fraude as eleições, sem apresentar nem mesmo um mísero indício, tornou-se prática recorrente na extrema-direita, com os resultados sempre os mesmos: criar uma cortina de fumaça, provocar a discórdia, colocar em dúvida o sistema eleitoral e espalhar o pânico entre seus eleitores. E essa é apenas uma das características que aproximam o argentino e seu partido, o La Libertad Avanza, do ex-presidente Jair Bolsonaro.

Há diferenças, claro: economista, Milei é autor de 17 livros; Bolsonaro é incapaz de ler um. Milei é candidato a presidente em seu país; Bolsonaro, a uma cela em Bangu ou na Papuda. Essas distinções, no entanto, não ofuscam as incômodas semelhanças.

Seguir a cartilha neoliberal na economia, reduzindo o Estado basicamente à sua função de polícia, é um deles. O estilo que a grande mídia brasileira costuma chamar de “controverso” e “provocador’, e a retórica ferozmente anticomunista e antiesquerdista, outros dois.

Milei é contra o aborto e a educação sexual nas escolas, ataca a “ideologia de gênero” e é a favor das armas. A exemplo de Bolsonaro, defende o revisionismo histórico dos crimes da última ditadura argentina (1976-83). Diz que o número de vítimas é superdimensionado pela esquerda e repudia, publicamente, os movimentos das Madres y Abuelas de Mayo e sua luta pela identificação dos desaparecidos políticos.

Contra o “sistema”

Analistas creditam a meteórica ascensão política de Javier Milei, em parte, a uma crise já crônica, que se arrasta há anos, mas aprofundada nos últimos dois governos, o do liberal direitista Mauricio Macri e do atual, o peronista de esquerda Alberto Fernández, incapazes, ambos, de oferecer uma resposta satisfatória à debacle econômica.

Mas tão importante quanto a crise é sua postura antissistêmica, capaz de atrair, além das tradicionais lideranças e eleitores de direita e extrema-direita, também os jovens, muitos deles ainda na adolescência. São eles a principal audiência do candidato nas redes sociais e que o saúdam, em suas aparições e comícios, aos gritos de “a casta tem medo! A casta tem medo!”.

Conhecemos o fenômeno, que se repete agora na Argentina, porque o vimos também no Brasil: uma espécie de “assalto”, pela extrema-direita, de um lugar que, historicamente, sempre foi o das esquerdas, o da rebeldia e da contestação, o de colocar em questão e confrontar os poderes estabelecidos.

Publicado em 2021, “¿La rebeldía se volvió de derecha”, do historiador argentino Pablo Stefanoni, avança algumas possibilidades interpretativas com o intuito de oferecer uma explicação possível a um fenômeno, em certa medida, ainda pouco compreendido. Da exposição de Stefanoni, quero destacar, sucintamente, dois pontos.

Para Stefanoni, à medida que aprofundava sua opção pela via institucional e, como parte dela, também a eleitoral, a esquerda se afastou da “imagem histórica da rebeldia, da desobediência e da transgressão”.

Transformada em uma espécie de gestora da normalidade e defensora das instituições, a esquerda perdeu seu potencial de “capitalizar a indignação”, restando vago um espaço ocupado em especial pela extrema-direita, e sua habilidade de questionar, afrontosamente, o “sistema”, um inimigo que pode tanto tomar a forma das urnas eletrônicas, quanto de movimentos sociais como o MST ou da “ideologia de gênero”.

Tirania do presente

Mas o que também está em disputa, ainda de acordo com Stefanoni, é a capacidade de imaginar futuros. Mais precisamente, confrontar a realidade, indignar-se com ela e propor alternativas para superá-la. Sem isso, quedamos reféns de um futuro que não desejamos, mas que tampouco somos capazes de transformar, impotentes para imaginarmos alternativas que não a que nos foi imposta.

Isso não significa que não existam movimentos, à esquerda, que se rebelam e reivindicam a herança contestadora de outros tempos. Tampouco que não seja possível derrotar eleitoralmente a extrema-direita, a exemplo da vitória de Lula ano passado e a possível prisão do ex-presidente, embora não pelos crimes em série cometidos ao longo de quatro anos, mas pelo roubo de algumas joias.

Por outro lado, esses movimentos soam cada vez mais minoritários dentro do campo dito progressista e, não raro, são mesmo desqualificados inclusive por setores de uma esquerda mais tradicional, à exemplo do que se disse e se diz, ainda, sobre junho de 2013. Ou o modo pejorativo com que são tratados os grupos “identitários” e suas pautas.

Além disso, o aprofundamento das desigualdades econômicas e sociais, de um lado, e o acirramento da luta política, de outro, de que resultou inclusive o avanço da extrema-direita e o ressurgimento da ameaça do fascismo, servem para justificar a opção pelo caráter defensivo das mobilizações recentes.

No Brasil, depois de quatro anos de Bolsonaro, soa quase alvissareira a opção pelo pragmatismo e o realismo político e o retorno a uma relativa normalidade democrática e da promessa de condições de vida minimamente dignas aos grupos precarizados. Não há nada de errado nisso, pelo menos não a curto prazo. Mas aprendemos nos últimos anos, de modo traumático, a não minimizarmos a importância de uma cultura democrática plural, sob o risco, inclusive, de perdermos mesmo a democracia formal e episódica.

E essa cultura democrática não a construímos apenas governando instituições e reproduzindo as condições do já existente. Sim, é verdade que quando o futuro se mostra ameaçador, como agora, parece mais cômodo nos aferrarmos e defendermos a normalidade do presente.

Mas o presente excessivo pode ser igualmente minaz. Fugir à sua tirania e perpetuidade pode ser um caminho para alargarmos nossos horizontes de expectativa e construirmos um futuro mais desejável. Para isso, é tarefa urgente da esquerda reivindicar e ocupar o espaço que, historicamente, sempre foi seu. Não podemos permitir que a indignação e da rebeldia sigam reféns da extrema-direita e seu projeto autoritário de poder.

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