A violência nas escolas é uma das faces do avanço da extrema-direita

Estamos colhendo os frutos das agressões à atividade docente, usando professoras e professores como bodes expiatórios, espalhando mentiras, destruindo reputações e desqualificando anos de trabalho

Mais uma tragédia, e mais uma vida perdida, em uma escola brasileira. O cenário, dessa vez, foi a Escola Estadual Sapopemba, zona leste de São Paulo, capital. Na segunda (23), um aluno de 16 anos entrou armado no colégio, matou uma colega, Giovanna Bezerra da Silva, de 17 anos, com um tiro disparado à queima roupa na cabeça, e feriu outras três.

Não se trata de caso isolado, antes pelo contrário.

Apenas entre 2019 e 2023 foram 18 atentados – mais que o dobro do período entre 2002, ano do primeiro atentado a uma escola, em Salvador, na Bahia, e 2018, quando sete ataques foram registrados. No mesmo período de quatro anos, entre docentes, discentes e perpetradores, que optaram, alguns, pelo suicídio, 20 vidas foram violentamente ceifadas.

Não é um caso isolado nem, tampouco, o aumento exponencial de incidências e de mortes é puro acaso ou acidente.

Estudo conduzido pelas professoras e pesquisadoras Telma Vinha e Cleo Garcia, da UNICAMP, “Ataques de violência extrema em escolas no Brasil”, lança alguma luz sobre o tema. Foram homens, adolescentes e jovens adultos, os autores de todos os ataques. O inverso aparece quando se trata das vítimas, a esmagadora maioria delas, mulheres.

A pesquisa confirma informações que, se não exatamente surpreendentes, ganham um outro estatuto agora que surgem devidamente respaldadas. Uma delas, em especial, está diretamente associada às políticas de facilitação do acesso às armas de fogo, tônica da gestão do miliciano Jair Bolsonaro, cujo número de licenças expedidas aumentou estarrecedores 473% em seu governo.

Foram elas as mais utilizadas e as mais letais nos atentados principalmente desses últimos quatro anos. Um dado preocupante: a maioria dos autores teve acesso a elas dentro de suas próprias casas e pelo menos um deles, menor de idade, aprendeu a atirar com o pai.

Os motivos, embora variados, têm em comum o contato e interação dos autores com grupos de extrema-direita, inclusive neonazistas, em sites e comunidades on-line de incentivo, entre outras coisas, à misoginia e a violência, os chamados “chans”.

Mas a liberalidade e a desregulação facilitam o convívio e a troca virtuais mesmo na superfície da internet, em ambientes como o WhatsApp, o TikTok, o Discord, o Telegram e o X (o ex-Twitter). Nessas redes, a quase total ausência de moderação, motivada pela monetização rápida e fácil dos engajamentos e likes, facilita, entre outras coisas, a cooptação por grupos extremistas, além de servirem como uma espécie de “palco” onde se é alçado à notoriedade e ao reconhecimento, trágicos e fugazes, entre seus pares.

Extremismo de direita e violência

O trabalho de Vinha e Garcia coincide, em muitos aspectos, com o extenso relatório entregue à equipe de transição de governo ainda no final de 2022.

Intitulado “O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental”, o trabalho pretendia não apenas apresentar ao futuro governo um problema em franco crescimento.

Mas municiá-lo com alternativas para políticas públicas capazes de enfrentá-lo para além da panaceia de entupir as escolas de policiais militares, aumentando, e não diminuindo, a exposição de alunas e alunos à violência. Tem sido exatamente essa, inclusive, a opção dos governos estaduais em suas apenas supostas tentativas de confrontar o problema.

E digo “supostas” porque não há, efetivamente, interesse em resolvê-lo. Em São Paulo, por exemplo, o bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos) vetou um projeto, aprovado pela Assembleia Legislativa paulista, que garantia a presença de psicólogos e assistentes sociais nas escolas do estado. Mas cogita contratar policiais aposentados para gerirem “programas de segurança escolar”, além de um programa que pretende colocar policiais, também da reserva, dentro das escolas em caráter permanente.

A violência a que estão expostas as instituições escolares, por outro lado, não é apenas, por assim dizer, objetiva. Basta olhar rapidamente pelo retrovisor para constatarmos, nos governos Bolsonaro e de seus cúmplices da extrema-direita reacionária, a degradação do ambiente escolar e a desqualificação, agressiva e permanente, de docentes.

Sei, já virou um clichê. Mas não custa repetir: não é mera casualidade ou simples incompetência. Mas um projeto político cuidadosamente pensado e executado, e que a derrota eleitoral de Bolsonaro não estancou. No Paraná, por exemplo, outro bolsonarista, o governador Ratinho Jr., mantém forte e firme o projeto de implantação das escolas cívico-militares, o principal (havia outro?) projeto de Bolsonaro para a educação.

Trata-se de flagrante contradição. Primeiro movimento amplo e significativo de inserção do indivíduo no espaço público, a escola é lugar de aprendizagem, mas também de acolhimento, de diálogo, de exposição ao contraditório e da diferença, de aprender a ouvir e ser ouvido, de ver e ser visto.

A imposição de uma disciplina militarizada a desautoriza a cumprir seu papel no desenvolvimento da cidadania e na produção de sujeitos autônomos. O resultado é um ambiente rígido e indiferente às demandas de alunas e alunos, que aprendem a calar suas angústias e sofrimentos e, não raro, a resolver seus conflitos por meio da violência.

A escola e a docência como inimigas

Mas não é só. A eleição de Bolsonaro, em 2018, deu novo fôlego ao discurso ideológico contra a educação e as escolas, fomentado há mais de uma década por movimentos como o “Escola sem Partido” e seu principal ideólogo, o advogado Miguel Nagib que, em audiência pública na Câmara dos Deputados, em 2017, equiparou professores a estupradores.

Em julho deste ano, nova comparação. Em evento pró-armamentista, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) disse não ver diferença entre um “professor doutrinador” e um traficante. Corrijo: o professor, diz aquele cujo pai o trata como um reles “zero-dois”, é pior que o traficante: ele “causa a discórdia dentro da sua casa” para “destruir a família”.

Uma das primeiras manifestações de Bolsonaro após sua eleição foi um vídeo em que estimulava discentes a gravarem seus professores, ameaçando-os com uma “surpresinha”. Alguns dias antes, a deputada estadual Ana Caroline Campagnolo, do PL catarinense, que em suas aulas envergava orgulhosamente camisetas de Bolsonaro, havia feito o mesmo.

Em 2019, o deputado federal Filipe Barros (PL-PR) usou suas redes sociais para atacar diretora, professores e alunos de uma escola estadual de Londrina, depois da apresentação de uma peça teatral sobre as ocupações de 2016. No mesmo ano, dois deputados cariocas, Daniel Silveira e Rodrigo Amorim, tentaram invadir o Colégio Pedro II sob o pretexto mentiroso de fazerem uma “vistoria”.

Ano passado, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), o zero-um, e as deputadas Bia Kicis (PL-DF) e Carla Zambelli (PL-SP), se uniram ao ex-jogador de vôlei Maurício Souza, para perseguirem um professor de Sociologia do interior de São Paulo por ensinar “ideologia de gênero”. Seu colega Eder Mauro (PL-PA) foi mais ousado: defendeu colocar no “paredão de fuzilamento” uma professora que usou, em uma prova, um meme criado a partir da pintura “Cristo crucificado”, do espanhol Diego Velásquez.

Os exemplos abundam, mas esses são suficientes para o argumento com o qual quero encerrar o texto. São anos de agressões à atividade docente, usando professoras e professores como bodes expiatórios, espalhando mentiras, destruindo reputações e desqualificando anos de trabalho.

A eleição de um fascista que elegeu a educação e os docentes como inimigos foi, a um só tempo, resultado e salvo conduto para que a violência, simbólica ou não, contra livros, bibliotecas, museus, escolas, universidades, artistas, professoras e professores só tenha aumentado.

Junte-se a esse cenário de desqualificação, perseguição e patrulhamento, de uma violência simbólica e discursiva, o aumento da circulação de armas e da exposição de adolescentes e jovens aos discursos de ódio de grupos extremistas (neonazistas, supremacistas brancos, incels, red pills, sanctus, etc.) e chegamos ao cenário atual, em que a escola, eleita pelo bolsonarismo um front de batalha na guerra cultural, se transformou em um espaço de brutalidade, de barbárie e morte. Bem ao gosto, aliás, dos bolsonaristas.

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