Delicado e melancólico, Aftersun é filme de sensações

"Aftersun" é um pouco também sobre nossa incapacidade de entender o outro e perceber que cada dor é uma dor

Como diz o teórico Robert McKee, autor de Story, o mais célebre manual de roteiro já escrito, “em uma história, nada se move para frente se não for através de conflito”. Conflitos são o motor do cinema clássico narrativo, é o que faz os personagens se mexerem, é o que faz o público querer saber qual será a próxima cena. Às vezes os conflitos são descarados como em filmes de invasão de alienígenas; às vezes, eles são quase invisíveis, como neste delicado “Aftersun”, longa de estreia da escocesa Charlotte Wells.

Em “Aftersun” os conflitos não são evidentes mas estão lá, sob camadas que só são reveladas com o passar do tempo. Aliás, o tempo e a memória têm papel chave aqui. O enredo conta a história de Sophie (Frankie Corio), de 11 anos, e seu pai, Calum (Paul Mescal) – ambos atores em estado de graça – em uma viagem de férias na Turquia. Sophie vive com a mãe e, por isso, tem pouco contato com seu pai. Calum, por sua vez, mal se vê na situação de pai ou mesmo na de um adulto. “Aftersun” acaba, assim, se tornando um filme de formação, desses que narram a transição de personagens entre a adolescência e a vida adulta, sendo que, neste caso, a transição é feita por pai e filha. Sophie, inclusive, muitas vezes se mostra mais madura que o próprio pai.

McKee, assim como qualquer outro teórico do roteiro, vai apontar que os conflitos precisam estar propostos desde o princípio. Afinal, é necessário que o espectador adentre ao filme, tenha interesse por aquela narrativa. Em “Aftersun”, contudo, só passamos a vislumbrá-los bem mais pra frente, talvez em uma metáfora com a saída da infância, quando em princípio, nada é de fato uma grande dor de cabeça.

Mas, então, sob que base se ergue o roteiro de Charlotte Wells, tão incensado no circuito internacional de festivais, inclusive levando o Prêmio do Júri da Semana da Crítica do Festival de Cannes? “Aftersun” trabalha principalmente com o carisma de seus personagens e com a poesia que os filmes de memórias costumam evocar. São escolhas para lá de arriscadas, mas que se mostraram extremamente felizes. Um poderoso aliado é também a câmera mini-DV que a pequena Sophie empunha e com a qual entrevista seu pai. Isso porque para além do texto ali dito, a textura das imagens claramente amadoras e caseiras encharcam o filme com sensações que são familiares a todos nós. Aqueles recortes mal filmados de um verão distante nos faz lembrar de nossas próprias melancolias, bem como de nossos próprios álbuns de famílias.

“Aftersun” é, também, um filme de poucas respostas. Muito não é explicado e Charlotte Wells trabalha com essas omissões em favor da obra, gerando sensação de suspense em procura de uma resolução que pode ser ou não trágica. Afinal, vemos em momentos isolados, uma Sophie mais velha que rememora aquele passado. Aí a importância final da fita mini-DV. Essa Sophie perdeu aquele pai. Mas por quê? Por ele ter morrido? Por eles terem se afastado? Por simplesmente o tempo ter passado e porque aquele pai não é mais o de agora? Não saberemos.

“Aftersun” é um pouco também sobre nossa incapacidade de entender o outro e perceber que cada dor é uma dor.

Em exibição nos cinemas e em breve na Mubi.

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