Atravessando trinta anos na história de uma família devastada pela tragédia da perda de uma criança, “Até logo, meu filho” é um épico de três horas de duração que arrasta o espectador pela tormenta do viver. O filme, ganhador dos ursos de prata de Melhor Ator e Melhor atriz no Festival de Berlin de 2019, é o quarto longa-metragem assinado por Xiaoshuai Wang.
Filme de realização impecável, aposta em estrutura clássica, recheada de flashbacks, para nos colocar próximo de duas famílias amigas: dois jovens casais com seus filhos homens. Nascidos no mesmo dia, as crianças são amigos inseparáveis, até que a morte de uma delas estraçalha aquelas vidas e seus relacionamentos.
“Até logo, meu filho” tem como pano de fundo a revolução cultural chinesa, que transformou o país em uma nação comunista, mas sobretudo põe em debate o lugar do indivíduo (de seus anseios individuais mais profundos) frente às vontades do estado e do bem coletivo. O foco principal aqui é a política do filho único, medida instituída na China no final dos anos 1970, que foi criada para limitar o crescimento populacional visando um melhor acesso à saúde e à educação. Mas não só, vemos a interferência do governo sobre a cultura consumida pelos jovens, a proibição de “festas dançantes no escuro”, a intervenção nas roupas, a planificação das individualidades. É interessante observar como um filme tão crítico às políticas que foram a base daquele comunismo por décadas (a política do filho único, por exemplo, só foi abolida em 2013) é aceito e fomentado pelo mesmo estado. Entendemos muito pouco da China e de sua estrutura de poder.
No filme, a dialética se apresenta justamente na relação dos pais com os filhos, metáfora para a posição do estado sobre o cidadão. Anos após a morte da criança, vemos o casal com um novo filho, agora um adolescente que fora adotado. Estranhamente, o filho tem o mesmo nome do antes falecido e é criado à mesma maneira. A rebeldia juvenial, a luta pela sua própria identidade, cria desgaste e brigas até a insustentabilidade e a fuga do menor. Aquele casal passa agora por um novo luto, sem falar no aborto forçado que a mãe foi submetida por causa da política do filho único.
Alegrias e desesperos vão se avolumar criando espécies de capítulos que se encerram tematica ou temporalmente, mas que jogam o enredo para outro lugar de esperança e desolação, em um roteiro exímio assinado por Xiaoshuai Wang em parceira com Mei Ah.
Como dito, há no longa-metragem uma contraposição entre as individualidades e o estado, mas também entre o lucro e a subserviência. A política do filho único impõe multas severas aos casais com mais filhos, o que faz com que famílias endinheiradas possam fazer suas escolhas. Mas a fita também é claríssima em nos mostrar como o lucro gera a corrupção do ser humano, pois a riqueza o coloca na posição de escolha e egoísmo.
“Até logo, meu filho” é um espécime raro, complexo, que aprofunda seus personagens para falar da alma humana e que deixa claro que não há respostas simples para questões complicadas.
Disponível para assinantes na Mubi.
Sobre o/a autor/a
Aristeu Araújo
Cineasta e crítico de cinema. Dirigiu oito curtas-metragens e há vinte anos escreve sobre filmes.