“A Viagem de Pedro” e “Marte Um” traçam metáforas sobre o Brasil a partir de sonhos e delírios

Laís Bodanzky e Gabriel Martins fazem filmes irmãos na vontade de diagnosticar os desejos represados de suas minorias

O cinema brasileiro vem escarafunchando e construindo nossa identidade filme a filme. De fato, é a sua função enquanto construtor e espelho de cultura. Por isso se fala tanto na necessidade do fomento e na continuidade de políticas públicas que ampliem e não restrinjam sua produção. “A Viagem de Pedro”, de Laís Bodanzky, e “Marte Um”, de Gabriel Martins, são dois exemplares recentes que, em exibição nos cinemas, vêm justamente para amplificar o debate acerca de quem somos nós brasileiros.

“A Viagem…” e “Marte” não poderiam ser filmes mais distintos. Um, o da Bodanzky, é um filme soturno, com ares de biografia psicológica e delirante; o outro, o de Martins, é um conto singelo sobre uma família negra de periferia; um é sobre um imperador e seus desejos de dominação; o outro é sobre pessoas pobres e seus sonhos inalcançáveis. Filmes distintos e irmãos que poderiam muito bem ser exibidos lado a lado.

Em “A Viagem de Pedro”, Cauã Reymond vive ninguém menos que Dom Pedro I, quando em 1831 atravessa o Atlântico para tomar de seu irmão o trono de Portugal e devolvê-lo à sua filha Maria II, coroada pela primeira vez com apenas sete anos de idade. No filme, não veremos a guerra entre absolutistas e liberais ou mesmo a morte do imperador, poucos anos após, vitorioso e tuberculoso. O roteiro, extraordinariamente escrito por Bodanzky, Luiz Bolognesi e Chico Mattoso, se concentra dentro da fragata que faz a travessia do oceano. Contudo, a obra nos informa, ali há uma lacuna histórica, com pouquíssimos documentos que nos digam o que de fato ocorreu na viagem. Anos antes, Dom Pedro havia declarado a independência do Brasil após o então rei de Portugal, João VI, ter deixado o país sob sua regência. Quando Pedro faz a tal viagem, seu filho Pedro II é posto como imperador do Brasil com apenas cinco anos de idade.

Já “Marte Um” conta sobre o desejo de Deivinho (Cícero Lucas) de um dia viajar para o planeta vermelho. O filme, recheado de afeto, acompanha cada um dos membros dessa família de periferia, desde o caçula e seu sonho em se tornar astrofísico, passando pelo pai porteiro, a mãe diarista e a irmã estudante de Direito. Com roteiro também de Gabriel Martins, Marte Um se foca no periférico para mostrar o tamanho do peso que é ser negro no Brasil. Deivinho quer ir pra Marte, mas sabe que o primeiro passo é estudar e, por isso, quer assistir a uma palestra com o renomado e midiático astrônomo Neil deGrasse Tyson. Porém, viajar até São Paulo e pagar pelo evento, por si só, já são etapas por demais distantes, difíceis demais de realizar.

Laís Bodansky e Gabriel Martins constroem filmes que falam sobre viagens e que são retratos do país. Se em 1831, Dom Pedro I viajava em um navio inglês repleto de trabalhadores negros (não escravos, mas quase que indigentes), na contemporaneidade de “Marte Um”, a negritude ainda briga por seu direito de sonhar. O filme de Martins é uma resposta à dominação cultural-hegemônica pela qual o Brasil passou e passa, iniciada lá nos tempos de colônia e perpetuada por tantos anos, embora ainda presente na mente de tanta gente. A Viagem de Pedro é um retrato delirante sobre um imperador, mas sobretudo é um relance sobre como este país foi construído na base do trabalho escravo e da opressão patriarcal.

Sintomaticamente, Bodansky retrata um Dom Pedro I impotente. Um homem cheio de poder, mas incapaz de uma ereção. Gabriel Martins não deve ter pensando nessa dualidade, mas seu Deivinho é uma criança com sonhos tão grandes como o de um foguete. Lembra até a música sexy-astronômica do sempre preciso Maurício Pereira, que canta “Beijar-te / E fazer sentido / Querer-te / E me sentir feito um foguete / Que prosseguiu subindo / Pra Marte / Onde te viu sorrindo / E é lindo / Um foguete querer-te e ter-te / E infindo…”.

A Viagem de Pedro e Marte Um estão em exibição nos cinemas.

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