O mais difícil é partir

Para Contardo Calligaris, somos uma sociedade de sonhos pequenos, amedrontada pelos nossos desejos e obcecada pelo controle do risco

O psicanalista italiano Contardo Calligaris – falecido em 2021 – gostava de defender uma tese impopular: não somos uma sociedade hedonista. Ao contrário do que anuncia o senso comum e uma parte da sociologia contemporânea, nossa sociedade não poderia ser mais refratária ao prazer.

Segundo Calligaris, nossa falta de sintonia com o prazer está tanto em detalhes pequenos quanto nas grandes decisões da vida. Somos anti-hedonistas nas escolhas profissionais – baseadas na segurança, naquilo que é mais rentável e no temor ao desconhecido. Ou quando damos voz ao nosso ímpeto higienista de saúde, recriminando, digamos, o prazer do chocolate por conta do medo do colesterol.

Para ele, somos uma sociedade de sonhos pequenos, amedrontada pelos nossos desejos e obcecada pelo controle do risco. E então, não raro, podem acontecer alguns dos grandes problemas do presente: a falta de capacidade de ter interesse pelo mundo e a dificuldade de se encantar de verdade pelos outros, isto é, extrapolar o próprio narcisismo.

Nem sempre foi assim. Não muito longe de nós, jovens podiam viver em comunidades alternativas, fazer uma revolução na arte ou sair pelo mundo viajando sem um tostão no bolso. Havia esperança de que o capitalismo pudesse ser superado ou, pelo menos, transformado. Estas escolhas e ideias nem sempre resultavam em satisfação – pelo contrário, poderiam ser fonte de frustração e arrependimento. Como o próprio Calligaris gostava de frisar: a busca da felicidade é uma busca problemática, um ideal inalcançável. No entanto, melhor conviver em plenitude com os ganhos e perdas de uma vida interessante, sem medo do desejo, do que trilhar somente as escolhas de segurança, chegando ao fim com o lamento do que nunca fizemos.

Se não somos uma sociedade hedonista, então o prazer permanece com uma conotação negativa. O sacrifício é uma atitude “do bem”, é uma atitude de “quem sabe o que quer da vida”. E uma vida sem medo do próprio desejo é frequentemente apontada como imatura, irresponsável, egoísta e, sim, o que seria um sinônimo disso tudo, hedonista, que aqui vira um xingamento.

Parto de Calligaris para refletir qual é o sentido de viajar para as pessoas. Para quem imagina a viagem como o ápice do hedonismo contemporâneo, lembro que, para justificar a viagem, gostamos de dizer que precisamos de um descanso para a cabeça, para que depois possamos voltar a trabalhar melhor. Isto é, viajar não é um prazer em si mesmo (o que nossa cultura tende a condenar), mas um artifício para produzir mais e melhor.

Nossa vida se tornou prisioneira de tabelas do Excel: os números do exame de sangue, o extrato bancário dos exercícios semanais, as intermináveis planilhas que todos precisamos preencher no cotidiano do trabalho. E é claro que a viagem também se tornou refém das planilhas: o mapeamento para que nada seja perdido, para que tudo seja aproveitado no tempo certo e, sobretudo, útil.

Os que navegam pelo mundo sem as redes de segurança e sem um sacrifício para chamar de seu terão julgamento ambíguo. Eles são os raríssimos hedonistas do nosso tempo – por isto mesmo, normalmente são condenados, taxados de infantis, aqueles sem um objetivo edificante da vida. Mas eles são também o sonho secreto de quase todo mundo – porque, no fundo, a maioria quer partir para realizar algo que sempre adia. Um postulado clássico da psicanálise é: adoramos recriminar nos outros aquilo que não temos coragem de autorizar a nós mesmos.

PS.: Logo depois que terminei este texto, li com tristeza a notícia da morte de Rita Lee. Eis um belo exemplo de uma vida sem medo da vida.

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