O Alasca e os meus 50 anos

Quero envelhecer entendo cada vez mais a lógica de Miles Davis, vendo no "erro" uma chance de fazer algo belo

No próximo dia 29 de agosto, completo 50 anos de idade. Pela primeira vez, faço aniversário fora do país. Eu e a Fran estamos nos primeiros quilômetros da mítica Alaska Highway, ainda no Canadá, em direção, sim, ao Alasca. A Fran está dirigindo o Paçoca e eu estou na mesinha de trás, escrevendo este texto do Plural.

Fazer 50 anos tem um peso diferente dos aniversários anteriores. Claro, nossa história pessoal não é feita de gavetas que se abrem e se fecham e, do nada, com o apagar das velinhas do bolo de aniversário, somos outra pessoa. E apesar de completar 50 voltas em torno do sol não ser exatamente, digamos, comparável ao fim do Império Romano ou invadir Constantinopla, esta é uma época que geralmente nos marca e leva a algum balanço do que fizemos com a vida até o momento.

O medo de envelhecer é, em certo sentido, o medo de fazer cada vez menos descobertas

Em “Atlas”, um livro muito poético de literatura de viagem, Jorge Luis Borges observa que a condição humana é uma condição de descoberta. Vamos crescendo e descobrindo a diferença entre o doce e o salgado, entre o côncavo e o convexo, aprendemos os números e o alfabeto. Porém, o que Borges não diz é que, quando vamos nos afastando da juventude, as descobertas vão rareando. Isto tem mais a ver com a nossa postura sobre o mundo do que propriamente encerrar aquilo que pode ser conhecido, porque o que pode ser conhecido ninguém consegue dar conta em uma única vida. Este sempre foi um receio meu – para mim, envelhecer, no sentido perigoso da palavra, é ser incapaz de novas descobertas. É fechar as portas para a mudança – o que, em última instância, significa morrer.

Mas envelhecer pode ser também a chance de descobertas diferentes. E talvez mais profundas. Vou citar uma que tenho pensado muito nestes dias de estrada. Há um vídeo curto na Internet do pianista de jazz Herbie Hancock. Eu adoro a criatividade radical do jazz – o improviso é um salto triplo mortal sem rede de proteção. No vídeo, Hancock comenta um episódio da época em que participava do conjunto do trompetista Miles Davis. Enquanto tocava “So What”, uma das composições mais clássicas da história do jazz, Hancock afirma que mandou um acorde muito errado no piano, justamente enquanto Miles estava solando. Hancock ficou arrasado, mas a reação de Miles foi surpreendente. Ele não entendeu o acorde como um erro. Miles fez uma pausa e começou a tocar notas para que, de algum modo, o acorde de Hancock fizesse sentido. Então vem um comentário genial de Hancock. Temos uma tendência a entender o mundo como algo que precisa funcionar conforme as nossas escolhas e vontades. Mas quase nunca isso é possível. O mundo é como é – o melhor que podemos fazer é construir algo positivo sobre a realidade, como Miles fez, sem pretender encaixar a vida somente na nossa vontade.

O Paçoca na mítica Alaska Highway

Eu fui um jovem de opiniões fortes e com uma visão rígida sobre os caminhos do que era certo ou errado. Continuo pensando que há situações que são inaceitáveis, há sim valores da ética que são inegociáveis. Mas envelhecer diminuiu muito aquilo que eu considerava inaceitável na juventude. Tenho a tendência a me olhar para trás e ver um menino arrogante, cheio de verdades para os que “pensavam errado”. Hoje, tenho a esperança de estar mais próximo de Miles e não entender a diferença como um erro, mas somente como um aspecto extraordinário da diversidade humana – uma oportunidade rara para a beleza.

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