Na costa da Califórnia

É difícil julgar um país tão multifacetado como os Estados Unidos

O Paçoca tem um problema sério com alcoolismo – antes de comprá-lo, eu já sabia que ele bebia demais. A coisa ficou crítica quando entramos na Califórnia, um dos estados em que o imposto é mais caro e o combustível pesou bastante nos custos da viagem.

Pelo roteiro californiano, fizemos toda a costa do Pacífico, de San Diego até as florestas das árvores mais altas do mundo, as redwoods, já na fronteira com o estado de Oregon. No meio do caminho, as paisagens da Big Sur na Pacific Coast Highway, conhecida como uma das estradas mais belas do mundo. Em San Diego, ficamos hospedados na casa do Marcelo e da Pilar, amigos de longuíssima data, que moram na cidade há sete anos.

Loja de doces em São Francisco. Foto: André Tezza

É sempre bom conversar com quem conhece a realidade de um país a fundo. Nestas horas, a gente se dá conta que aquele gosto de ser viajante antropólogo costuma errar bastante. Por exemplo: me chamou a atenção a quantidade de idosos trabalhando nos EUA. Eu havia associado isso com um gosto pela vida e pelo trabalho – o que não estava de todo errado, porque há muito serviço voluntário feito por pessoas com mais idade. No entanto, para muitos, a realidade é mais difícil: trabalhar é uma forma barata de se conseguir assistência médica, porque algumas empresas garantem o plano para os funcionários. Não há algo como o SUS nos Estados Unidos, todo o sistema é privado.

À medida que fomos parando nas cidades maiores, um outro problema ficou visível – os moradores de rua. Muitas vezes não eram só moradores de rua – eram viciados em fentanil, uma droga sintética 50 vezes mais potente que a heroína. Há duas realidades completamente diferentes nas drogas daqui. Existe o uso recreativo da maconha, muito presente nos estados liberais. E existe a zumbilândia do fentanil.

Camiseta à venda em San Diego, durante as festividades do 4 de julho. Foto: André Tezza

É perturbador ver as pessoas injetando ou fumando as drogas mais pesadas nos centros das cidades, sem qualquer inibição. O controle sobre a vida acaba e os viciados, que mal conseguem andar, são incapazes de dar conta das mais básicas noções de higiene. O fentanil é o paraíso dos traficantes – uma única dose é suficiente para o vício. Assistimos a um documentário na rede ABC e descobrimos que o problema está espalhado por todo o país e piorou bastante com a pobreza que acompanhou a pandemia. Uma consequência inevitável das cracolândias que surgiram é o esvaziamento do comércio e um mar de placas anunciando imóveis para locação.

Artesão em Monterey. Foto: André Tezza

Antes da Califórnia, estacionávamos o Paçoca em campings de parques ou em lugares isolados sem estrutura. Agora a viagem mudou de configuração. Não é muito simples conhecer as cidades maiores com um motorhome. Há restrições para estacionar ou pernoitar por todos os lados. Para não ganhar uma multa, o mais indicado é ficar em campings pagos. O problema é que os campings pagos ficam na região metropolitana, longe das atrações urbanas. Na nossa estadia de cinco dias em San Francisco, por exemplo, ficávamos cerca de uma hora utilizando o transporte público até chegar nas atrações turísticas. Mas não era um tempo perdido – andar de ônibus foi uma forma de conhecer a periferia, o comércio mais alternativo e os moradores locais.

A Califórnia que conhecemos teve de tudo um pouco. Em San Diego, era a época das festividades do 4 de julho. A cidade estava toda decorada. O patriotismo é importante para os americanos – está entranhado na cultura, para muito além das disputas ideológicas entre esquerda e direita, como no Brasil. Por outro lado, a Califórnia também é um sanctuary state. Simplificando muito, sanctuary state é um estado juridicamente simpático com imigrantes ilegais.

Prédios de São Francisco. Foto: André Tezza

É difícil julgar os Estados Unidos. Aliás, é difícil julgar qualquer país. Mas há algo de inegável: goste-se ou não, gente de todo o mundo quer morar no país da Disney. Legalmente ou não. Perto de 1,4 milhão de pessoas migram anualmente para cá legalmente – a maioria da Índia, China e México. E outros 10,7 milhões migram ilegalmente, todos os anos. Segundo pesquisas, a maioria dos americanos entende que a imigração fortalece o país (62%), mas apenas 49% dos republicanos, o partido da direita, pensa desta forma. É por isso que o discurso de Trump contra a imigração funciona bem entre os republicanos.

O caldeirão cultural daqui é complexo. Com tantas misturas, é arriscado fazer conclusões definitivas. Mas o que posso dizer é que o que eu imaginava que era os Estados Unidos não correspondeu com a realidade que eu vivi. Sim, há problemas – alguns são espantosos, se considerarmos a extraordinária riqueza da economia americana. Mas muita coisa funciona e funciona muitíssimo bem. E o que mais nos surpreendeu, positivamente, foram as pessoas – há muita gente prestativa, calorosa e bem-humorada entre os americanos.

Florestas de redwood. Foto de Francis Haisi

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