Literatura de viagem versus vlogs de viagem

Sigo mais encantado com a subjetividade da literatura do que com a autoajuda dos vlogs

Durante séculos, o que despertava o desejo de viajar eram os relatos impressos de aventureiros corajosos que saíam pelo mundo sem saber muito bem o que iriam encontrar pela frente. Os livros de viagem incendiavam a imaginação das pessoas, porque a terra ainda era um local encantado e cheio de mistérios. Antes da globalização e da comunicação digital, a uniformização da cultura não existia e não sabíamos muito bem quem eram aqueles diferentes de nós.

Este tempo durou até pouco tempo atrás. Minha geração ainda viveu um último sopro deste momento, quando livros contando as jornadas náuticas de Amyr Klink ou as viagens de trem de Paul Theroux faziam grande sucesso. Em certa medida, foi a literatura de viagem que me fez com que eu me tornasse leitor.

Desde a Internet, a literatura de viagem perdeu grande parte do seu encanto. Estes dias, navegando com o Google Maps, descobri que a região nepalesa do Khumbu, onde fica o Monte Everest, está mapeada pelo Google Street View, aquela ferramenta para ver imagens de ruas e rodovias. Veja bem, não há estradas no Khumbu, somente as trilhas dos sherpas – alguém pago pelo Google fez todos aqueles caminhos a pé, com uma câmera na cabeça, e tornou um dos trekkings mais famosos do mundo em um passeio virtual.

No nosso tempo, o texto com a simples descrição de um lugar é insuficiente para chamar a atenção, porque todos os destinos se tornaram integralmente clicáveis. Penso que a única literatura de viagem que ainda despertará interesse é aquela que continua sendo de alguma maneira literatura, isto é, uma impressão subjetiva, mais poética, da experiência de viajar. Livros que são um compilado de dicas ou de descrição de lugares tendem a desaparecer. É por isso que os livros de viagens de escritores consagrados – como os de John Steinbeck, V. S. Naipaul ou Cecília Meireles – continuam vivos.

No início da Internet, buscar informações de viagem era navegar por blogs pessoais e sites de revistas populares na era do impresso. Em resumo: a experiência ainda era bastante textual. Mas, à medida que as redes sociais e os smartphones ganhavam popularidade, os vídeos e as fotos se tornaram onipresentes, trazendo novidades como o influencer de viagem e os vlogs, isto é, canais de Youtube especializados em turismo.

Eu confesso que eu tenho uma relação ambígua com os, para usar uma expressão da moda, “criadores de conteúdo” de viagem. Claro, há coisas boas, divertidas e bem-feitas. Não nego que existam pessoas com conhecimento sólido, especialistas de primeira linha, com grande capacidade de comunicação. Seguramente há gente fazendo entretenimento de alta qualidade com as viagens – e, assim como muitos de nós, confesso que sou um ávido consumidor de conteúdo de viagem digital.

Mas, na média, penso que o resultado é ruim. Quando as coisas não funcionam direito, tenho a sensação de que o universo dos criadores de conteúdo é o dos fetiches. Parece que eles enxergam um sentido transcendental do cotidiano que é inalcançável para os demais. O discurso é uma combinação aleatória de ideias de autoajuda como “propósito”, “experiência”, “autêntico”, “resiliência”, “autodesenvolvimento”, “sair da zona de conforto”: viaje com o propósito autêntico das experiências resilientes do autodesenvolvimento de uma vida plena para ser o melhor de si mesmo e sair da zona de conforto…

Quando alguém começa a falar diante de uma câmera, não sei por que cargas d’água assume um personagem conselheiro, alguém que se sente autorizado a nos trazer uma revelação. Os conselhos muitas vezes vêm em forma de listas, intercalados pelo pedido de clicar no sininho e se inscrever no canal. Os influencers parecem que gostam de encarnar Moisés, trazendo tábuas com os novos dez mandamentos – e “o sétimo vai surpreender você”, diz a descrição do vídeo em que a fotinha do link do YouTube mostra alguém gritando e espremendo o rosto com as mãos.

De minha parte, acho saudável ter um certo ceticismo para encarar a vida. Prefiro não fazer da viagem um fetiche de iluminação. E sigo mais encantado com a subjetividade poética da literatura de viagem do que com a autoajuda dos criadores de conteúdo.

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