Alma turca

O Grande Bazar é o pai ancestral de todos os shoppings centers, quase tão antigo quanto a tomada de Constantinopla pelos otomanos

Logo depois da entrada de um dos pórticos do Grande Bazar, o atendente pulou na minha frente. A borla do fez balançava de um lado para o outro e o sotaque era quase oriental. “Chocolate, senhor? Amostra grátis!”. Fico surpreendido com a língua portuguesa. Ele estende uma bandeja à minha frente e não consigo recusar as gominhas de açúcar reluzentes. Quem acha que não pode ser influenciável, que passe na frente de uma loja de doces turcos.

Aceito o convite do atendente e entro na loja de doces. Todas as prateleiras cintilavam, as cores estavam organizadas em uma sequência não aleatória, como em um estojo de lápis de cor. “O senhor quer que eu monte uma caixa? Duas?”, o atendente ia me oferecendo mais amostras, agora já falando em inglês. Estava na autêntica lujinha das delícias turcas e o comerciante me mostrava o que tinha de melhor. No design de cada estabelecimento de uma vasta galeria labiríntica, eu me refestelava com aquela comunicação que havia sido refinada ao longo de séculos. O Grande Bazar é o pai ancestral de todos os shoppings centers, quase tão antigo quanto a tomada de Constantinopla pelos otomanos.

Pensei na minha família. Doces turcos seriam um presente que certamente faria sucesso. Sob as minhas escolhas, à medida que vou degustando as amostras, o atendente vai organizando duas caixas. O sabor é incrível, não há nada parecido no Brasil. O que chamamos de doces árabes têm descendência sírio-libanesa, região que fez parte do Império Otomano, mas são completamente diferentes.

Depois que todas as porções estavam cuidadosamente arrumadas, o homem atrás do balcão envelopa as embalagens em um plástico, faz um laço com uma fita vermelha e acomoda-as em uma sacola de papel com o nome da loja impresso em alfabeto turco. Em uma velocidade quase industrial, os pacotes estão embalados para presente.

Então o homem atrás do balcão diz, sem rir, “São duzentos dólares”. Imediatamente fico irritado. Eu não tinha perguntado o preço das porções em nenhum momento. Nas prateleiras não havia a identificação de preço algum. Alguns minutos depois eu descobriria que em nenhum lugar do Grande Bazar é possível encontrar uma etiqueta de preço. Com o rosto franzido, gaguejo, “Duas caixas de chocolate não podem ser duzentos dólares”.

Eu ainda não tinha passado por uma experiência de compras em Istambul e esquecido completamente que é preciso pechinchar nas lujinhas. Para mim, tímido, pouco afeito às negociações comerciais, não havia diversão e a ideia de que perderia muito tempo até conseguir um preço razoável me deixava tenso. Sem contar que agora percebia por que o atendente do balcão fez a embalagem com tamanha rapidez: eu ficaria constrangido se dissesse de repente que desistiria da compra.

O homem com o fez respira fundo, também aparenta inquietação, e agora diz que as duas caixas saem por cem dólares. A informação não me deixou aliviado, mas, pelo contrário, ainda mais irritado — seria impossível saber qual seria o preço justo dos doces. Tanto eu quanto o atendente estávamos impacientes e, no final das contas, depois de muita conversa fiada, levei as duas caixas por setenta dólares. Era caríssimo e, durante um tempo, andei emburrado pelos labirintos do Grande Bazar, com a determinação de não comprar mais nada. Mas o esforço é inútil. Logo fico desarmado novamente.

Depois de mais algumas horas perambulando, paro em frente a uma lujinha de lenços e, com o fez equilibrado com capricho sob a cabeça, o atendente agora é mais jovem e muito mais gentil. Novamente, algumas palavras em português e quando digo que sou de Curitiba, o jovem abre um sorriso e me diz que exporta para lá também — uma representante revende seus produtos na terra dos pinhais. Como fiz uma careta de quem não acredita mais em comerciantes do Grande Bazar, ele abre uma caixinha com centenas de cartões. Rapidamente me mostra um cartão com o nome de uma brasileira. E um endereço em Curitiba. Arregalo os olhos, dou um sorriso e estabelecemos uma conexão de confiança, que é o começo de qualquer transação comercial.

Continuamos em inglês e ele me pergunta, “Para quem o senhor quer comprar um lenço, senhor?”. Respondo que é para a minha esposa. “E a sua esposa tem qual cor dos olhos e do cabelo, senhor?”. Olho ao redor e, novamente, nenhum preço à mostra. Desconfiado, digo que ela tem olhos e cabelos castanhos claros. “Será um lenço para ser usado em uma situação especial ou para o dia a dia, senhor?”. Eu começava a entender o que era o comércio para os turcos. Não era somente uma questão de compra e venda. É uma questão de socialização que de algum modo funda a cultura. Digo que poderia ser para uma situação especial.

Ele então me mostra três lenços diferentes. “Por favor, senhor, pegue este primeiro”. A textura da seda era muito macia e os desenhos do tear tinham motivos geométricos, em cinza e azul claros. “É uma cor que irá combinar com os olhos da sua esposa, senhor”. Manipulo os outros dois lenços, sinto o tecido com qualidade claramente inferior. Vamos conversando e ele, sem dificuldade, me convence que é melhor levar mais lenços. Há mais gente que gostará dos presentes.

Quando finalmente me decido pela compra, é a hora de negociarmos o preço. “Que valor o senhor acha que seria justo, senhor?”, o atendente me pergunta com um sorriso nos lábios. “Sou um pobre professor universitário, não um homem de posses”, brinco e apresento uma feição triste. Já estava calejado com a experiência ruim da compra anterior e entrando na alma turca. “Por favor, senhor, diga um preço que considere justo, mas me prometa que irá dizer com o coração, e não com a razão”, mais um sorriso dos lábios.

Desta vez, consigo um preço que considero razoável. E fiz minha primeira amizade em Istambul.

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