Desenhar uma livraria

Ao saber que vinte artistas se reúnem para desenhar uma livraria, em um sábado pela manhã, sinto uma enorme esperança

Eu estava ao telefone com a Adriana Haddad, da Livraria Candeeiro, tentando conciliar nossas agendas para um evento literário. Ela sugeriu a quinta, porém eu não podia. Sugeri o sábado, mas ela declinou. “No sábado, não posso. Vem um pessoal aqui desenhar a livraria.” Como sempre acontece quando converso com a Adriana, desviamos do assunto. Começamos falando de um pedido, avançamos para o último livro do Marcelo Soriano. Discutimos uma consignação, enveredamos pela chuva que danificou o telhado da livraria. Pura digressão. Naquele dia, não foi diferente. A data do evento ficou em segundo plano. Me interessava saber quem iria desenhar a livraria. “Ah, você precisa conversar com a Fernanda Bonon.”

O evento, por fim, aconteceu duas semanas depois. Já a conversa com a Fernanda demorou meses. Nesse meio tempo, escrevi sobre uma livraria no Brooklin e sobre um apaixonado casal de editores sulamericanos. Entrevistei a Prisca Agustoni, vencedora do Oceanos, para rascunhar dez versões de uma coluna que ainda não consegui terminar (vai sair, Prisca!). Quando finalmente consegui me reunir com a Fernanda, pude escutar a resposta da pergunta formulada meses antes: Como assim, desenhar uma livraria?

A ação na Livraria Candeeiro é parte do Urban Sketcher Campinas, organizado pela Fernanda Bonon, Lui Bonon, André Lopes e Jonathan Melo. O grupo surgiu em 2018 e já realizou quarenta e três ações. O projeto foi fundado em 2007 nos Estados Unidos pelo artista visual Gabriel Campanario. Hoje são 417 grupos em atuação em 73 países, número que dobra a cada três meses. No Brasil, começou em São Paulo, em 2008, pelas mãos do arquiteto paulista Eduardo Bajzek. E teve início em Campinas quando os administradores, cansados de ir a São Paulo para participar, decidiram retratar sua própria cidade, exercendo a parte que lhes cabia do lema “nós mostramos o mundo, um desenho a cada vez”.

Primeiro, escolhe-se o local, não através do voto, mas do consenso. Depois, o destino é anunciado através das redes sociais para orientar tanto os veteranos quanto os recém-chegados. O projeto é gratuito, sem qualquer investimento público ou privado, sem qualquer faturamento. Inclusive, os participantes costumam levar material extra para quem se interessa em participar. As histórias me encantaram: um homem que se aproximou do grupo que desenhava a Praça da Matriz, em Itu, ilustrando em uma folha de bananeira. Foi convidado a participar. Descobri também que o grupo maranhense, organizado pela Regina Borba, lutou pela preservação da casa onde viveu o escritor Aluísio de Azevedo ilustrando o imóvel. A casa onde foi escrito o clássico “O Mulato” corria o risco de virar um estacionamento. Por fim, o projeto de restauro foi aprovado e hoje o imóvel se encontra preservado.

Claro, há outras histórias. Certa vez, no Maranhão, o grupo foi assaltado enquanto desenhava. Em um dos encontros, o grupo de Campinas decidiu desenhar a rodoviária: foram cercados e intimidados pelos seguranças até abandonarem o local. E há sempre os inconvenientes, como bem sabe quem quer que tenha participado de qualquer ação em um espaço público (testemunham meus anos de teatro de rua). A postura do grupo de desenhistas, contudo, é sempre de conversar, explicar e convidar.

No dia em que foram ilustrar a Livraria Candeeiro, chegaram às nove da manhã do sábado em vinte pessoas, que logo se espalharam pelo local, cada artista buscando seu ponto de vista. Desenharam a fachada, desenharam uma das funcionárias lendo próxima do cantinho do café, desenharam livros acomodados sobre o piano vermelho. Dezenas de pontos de vista desta linda livraria no Cambuí, Campinas. Descobri que o grupo já desenhou a biblioteca Manoel Zink e que a Fernanda ilustrou a Porão Livro & Café, de Brasília.

Fiz questão de começar o ano escrevendo sobre este coletivo de ilustradores. O mundo segue assolado pelos mesmos terríveis problemas do ano passado: as guerras, a catástrofe climática, a desigualdade abissal. Poderia citar uma dezena de tragédias. Contudo, ao saber que uma vintena de artistas se reúne para desenhar uma livraria, em um sábado pela manhã, não posso deixar de sentir uma enorme esperança. A arte salva. Que o futuro nos seja gentil.

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