NÓS

Foto: Luiz Hanysz e Luísa Menegatti

Antes de ser criada, a base de cola nas sobrancelhas e glitter nos olhos, eu vivia dentro daquele bendito armário onde todas as Manas ficam até um determinado tempo da vida, ou algumas – infelizmente – a vida inteira. Com teatro e poesia nos anos de escola, conseguia sair e respirar, mas de súbito precisava voltar, por vontade própria ou por pressão daqueles que me cercavam.

Eu sentia o peso de não ser como os outros desde que me entendi por gente e comecei a perceber que homens e mulheres tinham papéis distintos na sociedade. Eu não poderia chorar, gostar de dançar ou vestir cores vibrantes, como um rosa choque ou um laranja neon. Nas minhas veias deveria correr o amor por esportes, por carros e por garotas. Eu nunca entendi quem havia estabelecido essas regras e porque deveria segui-las, mas segui.

Lembro-me de uma vez, entre o 1º e 2º ano do fundamental, que fui à sala da direção pela primeira vez. Um dos colegas de classe havia chamado eu e um amigo de “viados” e nós, abusados como sempre, retribuímos com um sonoro “viado é você”. Não fazíamos ideia do que a palavra significava, afinal, tínhamos entre 7 e 8 anos, mas de uma coisa tínhamos certeza. Pela conotação negativa que os adultos empregavam ao termo quando falavam, nos dava a entender que ser “viado” não era uma coisa boa.

Leia mais: Prazer, Odara!

E assim fui crescendo, e assim fomos crescendo. Para a maioria dos LGBTIs a infância é um período tenebroso, a adolescência pode ser pior e a vida adulta talvez signifique a libertação. Muitos de nós só conseguem chutar a porta desse maldito armário quando saímos da casa de nossos pais e adquirimos independência ou estabilidade financeira. É um longo caminho para poder existir, ser e viver.

Dias atrás, nesses posts compartilhados no Facebook, li algo sobre um senhor (gay) de 70 e poucos anos que disse ter passado a vida inteira na defensiva, lutando diariamente, apenas, pelo direito de existir. Eu não sou nenhuma Alice e tenho plena noção de que nunca foi fácil não se enquadrar nos padrões heteronormativos da nossa sociedade, mas o que me entristece é o fato de termos que, diariamente, justificar o nosso direito à vida como pessoas LGBTIs.

Depois que me assumi como um menino gay, muitos daqueles que me cercavam com beijos e abraços, viraram as costas de uma forma inesperada. As pessoas do círculo religioso de que eu fazia parte se mostraram ignorantes quanto ao maior ensinamento de Jesus, o amor ao próximo. Aos poucos, aquilo que foi construído numa vida que não era totalmente minha se desfez. O que era mais falso que unha postiça, quebrou. E a minha nova vida, assim como minha make, pude construir com muitas cores, brilhos e movimentos.

A Odara nasceu como uma forma de resistência ao meu antigo eu e à todos aqueles que adoram cag*r regras por aí. Todos os dias ela me lembra que voltar ao armário não é uma opção, mesmo em tempos sombrios, em que pessoas inimagináveis assumem o poder. Nossos irmãos e irmãs estão morrendo por aí, com rostos desfigurados e corações arrancados. Somos rotulados, acuados e exterminados. Cabe a nós, que continuamos vivos, emprestar nossa voz aos manos, as minas e as monas que viraram estatística de mais um assassinato LGBTI no Brasil.

O Transformista Local não será só um blog voltado somente aos assuntos LGBTIs, mas também uma forma de existir e resistir. Em um país onde as pessoas se “informam” por WhatsApp, um espaço como esse, num projeto como esse, significa VISIBILIDADE. Aqui nós seremos vistxs, ouvidxs e conhecidxs. Eu escrevo, mas quem faz o Transformista Local somos NÓS!

No mais, Cílio Colado, Neca Aquendada, Ahaaaza viado!

22 comentários em “NÓS”

  1. Sabe que já sou fã né! Te vi de reninha no Soviet e fiquei apaixonada. Sou uma menina heterossexual que ama esse universo LGBTIs.
    Que post lindo, já quero o próximo! ♥

    1. Oi Odara querida! Adorei suas palavras, sua coragem, sua luta por todos estes jovens que não tem o carinho, a compreensão , o respeito e o acolhimento da família e da sociedade. Sou mãe orgulhosa de um gay. Sucesso nesta luta admiravel . Bj , meu respeito e carinho. Luci

      1. Luci, querida! Fico imensamente feliz que tenha gostado do texto. Estarei aqui sempre, principalmente, por aqueles que não encontram amor e conforto onde seria de direito. Espero poder ajudar. Um abraço com carinho <3

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