Podcast – Vida Loca

Ameaça a aluno em colégio militarizado mostra confusão entre disciplina e submissão

Essa foi a frase que o estudante de ensino médio de uma escola cívico-militar de Imbituva, Paraná, escreveu na sua carteira, junto com o desenho de uma folha de maconha. Alguém o denunciou e, durante a aula, o monitor – um cabo aposentado da Polícia Militar – tirou-o da sala para admoestá-lo. Tratava-se de indisciplina escolar, dano ao patrimônio público, além de propaganda de droga ilícita. Vários eram os motivos para chamar a atenção do jovem, afinal, uma escola é um lugar para o exercício de responsabilização e, sem dúvida, nossos atos, na medida em que afetam os outros, os próximos, os distantes e mesmo os que nem estão aqui, como quando causamos  danos ao meio ambiente, devem ser sucedidos de explicações, justificativas e, se for o caso, reparações. 

O monitor provocou a interrupção de uma aula, causando prejuízo para os demais alunos e alunas. Desnecessário. Um sinal preocupante a respeito da ordem de importância das coisas no universo da escola cívico-militar. Um aluno comete um ato questionável, o aparato de controle disciplinar toma conhecimento do fato, e resolve intervir no espaço do aprendizado para retirar o aluno de sala, interrompendo sua aula e atrapalhando o trabalho da professora.

“A segurança vem em primeiro lugar”, endossariam os pais e professores que votaram pela transformação da escola pública em cívico-militar. Outro equívoco, e grave: a escola, por concepção, é lugar de invenção e, por isso, de compromisso com a liberdade. Desde Kant que sabemos que, sem liberdade, a Razão não se enraíza e o conhecimento não progride. Em um espaço disciplinarizado, ensinou-nos outro filósofo, só se obtém como resultado “corpos dóceis” e não cidadãos criativos e protagonistas de seus próprios futuros. Aliás, nesse ano do centenário de nascimento do maior educador brasileiro, Paulo Freire, a simples ideia de uma escola com policiais aposentados como administradores disciplinares o faria morrer de novo. De tristeza, dessa vez. Ou de vergonha.

Mas a intervenção na sala de aula para cobrar o aluno de sua atitude foi só a ponta do iceberg, segundo a denúncia do Ministério Público do Paraná. O monitor teria ameaçado o aluno de morte, afirmando “que já tinha matado vários e que ele não iria fazer diferença”. O diretor, um sargento aposentado da Polícia Militar, teria, segundo a denúncia, tentado acobertar a ameaça de seu colega de farda. Ou seja, o jovem havia sido constrangido e ameaçado e se os fatos não tivessem chegado aos ouvidos dos promotores, tudo teria permanecido igual na escola pública de Imbituva: o dia começaria mais uma vez com a formação em filas para o início das aulas, com a execução do hino e o hasteamento da bandeira e com o silêncio imposto nos corredores e nas salas de aula.

O aluno submetido aos crimes – segundo a denúncia do Ministério Público – de ameaça, vias de fato, violência arbitrária, submissão de adolescente a constrangimento, “não faz diferença” para o policial responsável de colocar “ordem” na escola, com o aplauso de muitos pais e professores e tantos outros , mas que certamente não admitiriam essa atitude com seus próprios filhos, pois para eles seus filhos não são como o jovem que desenhou a folha de maconha na carteira. 

Somos um país dividido entre os que gostam de dizer que o salário dos policiais vem dos impostos que eles pagam e os que ganham pouco e veem seus filhos sofrerem a ação violenta desses indivíduos fardados. E que também ganham pouco. Um paradoxo que não parece incomodar a maioria. Disciplina, segurança. Interessante imaginar que poderemos ser um país que progrida com repressão. Quase um oxímoro.

É comum referirmo-nos aos policiais como “agentes da lei”. Não foi, em absoluto, esse caso, com esses policiais.. A lei diz claramente o que não pode ser feito com um cidadão, principalmente um menor de idade. Mas os aplausos de muitos pais e professores – e certamente muitos leitores dessa coluna – não são dirigidos para o cumprimento da lei, mas para a exigência da submissão sem qualquer recompensa: a vida pode ser péssima, o transporte público um inferno, o serviço de saúde uma quimera, as possibilidades de melhoria social uma utopia, a invisibilidade a tônica diária mas, mesmo assim, a obediência tem de ser total ou então a repressão torna-se “necessária”.

“Vida loca”, isso sim. “Vida loca”. De que outra forma é possível descrever um cenário como esse? 

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