Um dia de abuso no Ligeirão de Curitiba

O homem é branco, bem vestido e já responde por crimes de roubo, furto e estupro. A vítima é mulher e passou por três delegacias antes de ver o agressor ser liberado

Eram 8h de terça-feira (22) quando a consultora de vendas Caroline Bilibio embarcou no famoso ônibus biarticulado de Curitiba, o Ligeirão. Ela seguia para o trabalho e estava no Terminal do Hauer. Sentou de costas e, em pé, à sua frente, logo parou um homem. Ela cochilou e ao abrir os olhos se deparou com ele de zíper aberto, se masturbando. Ejaculou. Não encostou nela, mas o pavor foi imediato. Gritos e o ligeiro desembarque dele, já no ponto final, na Praça Carlos Gomes, no Centro. Aos berros, ela conseguiu ajuda de outro homem para segurar o agressor até a chegada da Guarda Municipal.

Não fosse o que veio depois, teria sido “só” mais uma das tantas histórias de abuso e violência contra mulheres em coletivos.

Caroline e seu agressor, preso em flagrante, foram encaminhados, junto com a testemunha, para a Delegacia da Mulher do bairro Cabral. Lá, a vítima foi ouvida pela escrivã e aguardou a delegada de plantão notificar, no boletim de ocorrência (BO), que a denúncia não poderia ser avaliada por aquela delegacia, pois não se tratava de um crime sexual, mas um ato obsceno. “A delegada nem falou comigo. Fizeram um BO e ela só colocou nos autos que não era de responsabilidade da Delegacia da Mulher, pois não era importunação sexual, mas um ato obsceno”, lembra Caroline.

Mesmo com antecedentes criminais por roubo, furto e estupro, o agressor foi encaminhado para o 8º Distrito, no Portão, a Central de Flagrantes. “Lá, também não quiseram nos atender e nos mandaram para o 1º Distrito, no Centro, onde me disseram que a única que poderia ter dado flagrante nele era a delegada”, relata a vítima.

Resumo: após passagem por três delegacias, e um dia de trabalho perdido, Carolina viu o homem ser liberado, sem deixar as roupas sujas de esperma como prova. Ele irá responder em liberdade à acusação por ato obsceno – que prevê de três meses a um ano de prisão, ou multa.

A Lei 13.718/18 diz que importunação sexual é “praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”.

“Esse contra alguém deve ser revisto. Pois isso não quer dizer que ele tem que me tocar ou ejacular em mim. Contra mim foi. E sem o meu consentimento. O que a delegada desconsiderou. Ele tinha que ter sido preso; está respondendo a quatro crimes, sendo dois por estupro, inclusive de vulnerável; jamais poderia estar solto. Voltou a cometer um ato que é o princípio de tudo. Ele não me tocou, ele não me estuprou, não ejaculou em mim. Mas o que ele fez foi, sim, um crime sexual e devia ter o agravante de ser um estuprador. Ele nunca deveria ter saído da Delegacia da Mulher, onde eu deveria ter sido atendida de forma mais humana e atenciosa”, constata Caroline.  

“Hoje eu queria dizer para as mulheres que elas podem denunciar, que resolve, mas infelizmente não. Levar pra delegacia é um constrangimento ainda maior do que não fazer nada”, conclui a vítima, de 25 anos.

Delegacia da Mulher fica na Casa da Mulher Brasileira, no Portão. Foto: Everson Bressan/SMCS

Controvérsia

A advogada Mariana Paris, especialista em Direitos das Mulheres e Justiça de Gênero – pesquisadora da Clínica de Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e da Faculdade de Direito da Universidade de Paris – explica que o crime de importunação sexual surgiu para tornar mais grave o que antes era caracterizado somente como “importunação ofensiva ao pudor”, uma contravenção penal com punições mais brandas. O que chama atenção, observa Mariana, é que o crime de importunação sexual foi criado, justamente, diante do clamor popular por um caso de ejaculação no transporte público que aconteceu em São Paulo.

“A aplicação do crime de importunação sexual gera ainda muita controvérsia, confunde-se à prática, ora com o crime de estupro, ora com a extinta contravenção penal, e isso realmente gera problemas e dificuldades para as mulheres”, avalia a advogada.

Ela destaca ainda que a Lei que define a importunação sexual revogou expressamente a contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor. “Então, tudo aquilo que poderia ser antes a contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor e não se caracteriza como estupro ou crimes mais graves entre os crimes contra a dignidade sexual, deve ser enquadrado como importunação sexual.”

Não chegou lá…

A coordenadora das Delegacias da Mulher no Paraná, a delegada Marcia Vieira Marcondes, enfatiza que ato obsceno é um crime que não visa uma pessoa específica. “Ele quer horrorizar, causar choque; se expõe de alguma forma, com o intuito de ferir a moral pública, de outros.”

Já a importunação, diz ela, é dirigida a uma pessoa e sempre com cunho sexual. “Talvez ele passasse a uma importunação, mas não chegou lá. Só podemos ir até onde a gente vê. O que tinha acontecido até aquele momento é que ele se expôs. Se dali em diante ele teria algum ato posterior, aí teríamos uma importunação ou até uma situação de estupro. Mas o que ocorreu até o momento é que é passível de punição. Não deixa de ser crime, mas é por ato obsceno”, reforça Marcia.

“Tenho que trabalhar com o fato que existe. Não posso pensar no que poderia acontecer. Poderiam acontecer várias coisas, até um sequestro, mas não tenho como antecipar esta conduta. Tenho que trabalhar com fatos que efetivamente existem”, pondera.

“Ele vai ser punido pelo que ele fez e não pelo que nós achamos que ele vai fazer. Ele podia também não fazer nada além daquilo. Nós não sabemos. Não há como trabalharmos com um ‘acredito que ele iria fazer’. Mas não deixa de ser crime”, frisa.  

A delegada acrescenta ainda que o fato dele já responder a outros processos por estupro não pesa neste caso. “Temos um crime específico e ele será julgado por este crime específico. Lá na frente, quando o juiz for somar penas, aí sim podemos ter uma situação diferente. Mas a situação criminal dele é a que estava ocorrendo naquele momento.”

O Plural não conseguiu contato com o acusado nem com sua defesa.

BO que começou na Delegacia da Mulher e foi finalizado no 1º Distrito da Capital
Outro homem foi testemunha do fato

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