Presos sem necessidade por Moro em 2013, agricultores processam a União

Produtores rurais do Paraná ficaram de 60 a 90 dias presos sob suspeita de desviar recursos do governo federal. Eles foram absolvidos quatro anos depois, mas programa de agricultura familiar foi esvaziado

Três agricultores presos em 2013 por ordem do então juiz Sérgio Moro ajuizaram uma ação em que pedem reparação de danos à União e acusam o ex-titular da 13.ª Vara Federal de Curitiba de ter cometido uma série de arbitrariedades e erros ao longo do processo. Os produtores rurais das cidades de Irati e Inácio Martins, na região central do Paraná, ficaram de 60 a 90 dias presos preventivamente e foram inocentados em 2017.

As prisões foram feitas no dia 24 de setembro de 2013, na operação Agro Fantasma, que investigou supostos desvios de recursos públicos do PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), parte do programa Fome Zero, lançado em 2003 pelo governo federal. Onze pessoas foram presas, entre elas um diretor regional da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento). A Polícia Federal também cumpriu 37 mandados de busca e apreensão e 37 de condução coercitiva em 15 cidades do Paraná, Bauru (SP) e Três Lagoas (MS).

Moro expediu os mandados no dia 13 de agosto, apesar do entendimento do Ministério Público Federal (MPF) de que poderiam ser tomadas medidas cautelares contra os suspeitos. Os três agricultores que estão processando a União faziam parte da Associação de Agricultores Ecológicos São Francisco de Assis, com sede em Irati. A entidade vendia alimentos por meio do PAA, com distribuição simultânea para creches e entidades de cinco municípios da região.

Iate e colarinho branco

Moro ficaria nacionalmente conhecido a partir de 2014, com a operação Lava Jato, mas a lógica de tomar medidas consideradas “duras” para combater os “crimes do colarinho branco” já estava presente na operação Agro Fantasma. A sequência das investigações e o arquivamento dos oito processos decorrentes da operação que mirou em supostas irregularidades no PAA, no entanto, mostraram uma realidade bem diferente da divulgada pelos jornais da época: nesse caso não havia colarinho branco nem crime.

Roberto Carlos dos Santos tinha 46 anos quando foi preso. O produtor rural de Irati diz que os policiais federais perguntaram onde ele escondia “o iate” e “o carro do ano”. Sem ser informado dos motivos, foi levado para a carceragem da PF em Curitiba. Ficou 48 dias preso. Em entrevista ao jornalista Marcelo Auler, em agosto de 2018, Santos contou que era tratado como “bandido perigoso” e “chefe de quadrilha” na carceragem da PF.

O iate nunca apareceu, até porque Irati fica a cerca de 300 km do mar. E os valores movimentados pela associação, que contava com 125 famílias associadas em 2013, não indicam crimes de “colarinho branco”. O valor máximo era de R$ 4,5 mil por ano para pequenos produtores, na modalidade compra e doação simultânea, e de R$ 8 mil por ano na modalidade de compra direta, por meio de cooperativas e associações.

Em quatro anos, de 2009 a 2013, todas as famílias de agricultores que participaram do programa no município de Inácio Martins, por exemplo, receberam um total de R$ 78 mil, uma média de R$ 19,5 mil por ano, valor a ser dividido entre todas as famílias. Em Fernandes Pinheiro, o valor foi de R$ 80 mil em quatro anos; em Rebouças, de R$ 27 mil; em Teixeira Soares, de R$ 70 mil; e em Irati, município com o maior número de famílias, de R$ 196 mil no mesmo período. Um iate Azimut 72 S atualmente à venda no Guarujá (SP) custa R$ 10,6 milhões.

A suspeita era que os agricultores desviavam recursos federais ao não entregar os produtos. O PAA previa a compra da produção de pequenos agricultores, com dinheiro do programa Fome Zero, como forma de incentivar a produção familiar. Em contrapartida, as famílias faziam doações de alimentos para creches, escolas e outras instituições. Durante as investigações, testemunhas confirmaram que os alimentos eram entregues.

“O programa tinha regras bastante burocráticas. O que acontecia é que eles pactuavam de entregar um produto e, às vezes, entregavam outro, no mesmo valor, com base nos critérios estabelecidos pelo programa”, diz a advogada dos agricultores, Naiara Bittencourt.

“Não se chegou a nenhum desvio de recursos, a nenhuma apropriação indevida. A substituição dos produtos era feita para se adequar à realidade da agricultura, os contratos eram feitos até seis meses antes e havia interferências climáticas.”

Naiara Bittencourt, advogada dos agricultores.
Roberto Carlo dos Santos, agricultor acusado de ter um iate, em entrevista ao jornalista Marcelo Auler, em 2018. Foto: reprodução/YouTube.

Algema e absolvição

Os 11 presos na operação Agro Fantasma foram absolvidos em 2017 pela juíza substituta da 13.ª Vara Federal de Curitiba, Gabriela Hardt (a mesma que condenou o ex-presidente Lula no caso do Sítio de Atibaia), por falta de provas. No dia da prisão, os policiais invadiram as residências com armas de grande porte, segundo os produtores rurais, reviraram os objetos e acusaram os suspeitos na frente de seus familiares. Moro autorizou os agentes a utilizarem algemas e um dos agricultores foi levado algemado para a delegacia.

Gelson Luiz de Paula, outro agricultor preso, ficou 48 dias na sede da Superintendência da PF em Curitiba, no bairro Santa Cândida. Com problemas intestinais, não conseguia se alimentar e perdeu 9 kg em poucos dias. Ele relata que teve dificuldade para receber a visita de familiares (seu pai só foi autorizado a visitá-lo um mês depois da prisão). Chegou a dividir com 15 pessoas a cela que tinha apenas dois beliches. Depois que foi solto, passou a ter ansiedade e dificuldade para dormir.

A família do agricultor Nelson José Macarroni recebeu a visita da PF às 6h da manhã naquele dia 24 de setembro de 2013, mas ele estava na sede da Associação São Francisco de Assis. Os policiais fizeram uma busca na casa e teriam dito para os familiares do produtor que se tratava de uma investigação sobre tráfico de drogas. Eles estariam ali em busca de entorpecentes. Nada foi apreendido. Nelson foi preso na sede da associação e algemado pela cintura. Permaneceu algemado das 8h30 às 17h30. A prisão na 14.ª subdivisão policial, em Guarapuava, durou 64 dias.

Roberto Carlos dos Santos (o suspeito de esconder um iate) só foi autorizado a receber visitas depois de 30 dias preso. Ele diz que até hoje é estigmatizado e visto como “culpado” na comunidade. Precisou de acompanhamento psicológico. Sua filha, com 13 anos na época da prisão, teve síndrome do pânico e apresentou um quadro de depressão.

“Eles nem sabiam que a investigação estava em curso. Foram presos com abuso da polícia e foram impelidos a falar sem a presença de um advogado. Tudo isso corrobora que essa instrução processual foi eivada de erros”, afirma a advogada Naiara Bittencourt. “O argumento utilizado foi que a prisão impediria a interferência no curso processual e que seria um crime de colarinho branco. O fato de o MPF não recomendar a prisão é um dos fatores que demonstra a ilegalidade e a arbitrariedade dessa prisão preventiva.”

“Cadê a mídia?”

Ao chegar à delegacia, logo após ser preso, Nelson Macarroni conta que ouviu um dos policiais federais perguntando “Cadê a mídia? Cadê a mídia?” Em seguida, o agente teria ligado a televisão para acompanhar as notícias sobre a operação. A Agro Fantasma já estava em todos os sites de notícias. Em muitos deles, a sentença já havia sido dada.

O jornalista Reinaldo Azevedo, em seu blog no site da revista Veja, escreveu que os “companheiros” (alusão a filiados ao PT) estavam “tirando comida da boca de crianças pobres”. “Os ‘companheiros’ definitivamente, não estão na política a passeio. Vieram para colonizar o estado brasileiro e estão fazendo isso”, escreveu Azevedo.

Uma das vozes mais críticas aos governo dos PT na década passada, Azevedo também usou uma carta do MST (Movimento Rural dos Trabalhadores Sem-Terra) sobre a operação e o PAA para tentar ligar o movimento a práticas criminosas. “ESCÂNDALO”, escreveu o jornalista com letras maiúsculas. “MST e seus satélites divulgam carta contra a PF, que investiga roubalheira na área da agricultura familiar. Estão com medo do quê?”, questionou o blogueiro. “Roubalheira”, sentenciou ele. Sem provas, mas nestes termos.

Interpretação “livre” e semelhante foi a adotada pelo jornal A Tarde: “PF desmonta quadrilha que fraudava programa do governo”, sentencia o título da matéria. “Não pegamos nem metade”, diz o delegado responsável pela operação. Segundo ele, entre os principais crimes cometidos pela “quadrilha” estavam “falsidade ideológica, estelionato, peculatos culposo e doloso e prevaricação”.

Para Naiara Bittencourt, existe a possibilidade, caso a União seja condenada na ação movida pelos agricultores, de se buscar a responsabilização do juiz que determinou as prisões e dos agentes da PF que cometeram arbitrariedades. “Nesse caso (de condenação), a União poderia entrar com uma ação de regresso contra os servidores públicos da época e cobrar esse ressarcimento.”

Blog do jornalista Reinaldo Azevedo na revista Veja, na época da operação Agro Fantasma: sentença já estava dada (Reprodução)

Programa esvaziado

As consequências judiciais da Agro Fantasma foram nulas, pois os oitos processos foram arquivados e os 11 indiciados foram absolvidos. A operação deixou efeitos na vida de cada indiciado, na vida dos agricultores da região e no Programa de Aquisição de Alimentos, que nunca mais se recuperou. Como é comum depois de cada escândalo no Brasil, as torneiras foram fechadas em todo o país. Na época da operação, agricultores da região deixaram de receber R$ 98 mil, valor referente a alimentos que já haviam sido entregues.

Segundo a ONG Terra de Direitos, em 2012 foram executados 112 programas dentro do PAA no Paraná, com 8.215 agricultores familiares atendidos e 1.208 entidades beneficiadas. Os investimentos na agricultura familiar no estado foram de R$ 31,3 milhões. Ao final de 2013, após a operação Agro Fantasma, foram contabilizados 22 projetos ao longo do ano, 2.024 agricultores contemplados, 223 entidades beneficiadas e R$ 7,8 milhões investidos. A produção de alimentos caiu de 16,2 mil toneladas para 4,9 mil toneladas. A Associação São Francisco de Assis perdeu todas as 125 famílias associadas.

“A operação trouxe vários prejuízos. Ela desmobilizou vários agricultores que estavam preparados, animados e que mantinham suas rendas com a produção de alimentos”, disse ao Plural o agricultor Gelson Luiz de Paula. “Eram várias dinâmicas que incentivavam os agricultores a produzirem alimentos com comercialização garantida. Essas famílias posteriormente foram embora para grandes cidades como Curitiba e Florianópolis. Houve impacto na vida de várias famílias. Houve impacto também na alimentação dos beneficiários do programa, muitos se alimentam exclusivamente desses alimentos, o que gerou insegurança alimentar.” 

Gelson de Paula, agricultor que ficou 48 dias preso, em entrevista dada em 2018. Foto: reprodução/YouTube.

Outro lado

Em nota, Sérgio Moro ressaltou que as buscas no âmbito da operação Agro Fantasma foram solicitadas pela PF à Justiça. Ele destacou que ele mesmo, na condição de juiz titular da 13.ª Vara Federal de Curitiba, revogou as prisões.

“Em 2013, a Polícia Federal requereu buscas e apreensões e prisões por suspeitas de desvios de recursos do programa de agricultura familiar, todas baseadas em denúncias de fraudes nas prestações de contas dos gestores. Estariam sendo prejudicados pequenos agricultores rurais. As medidas foram deferidas em parte pelo juízo da 13.ª Vara Federal de Curitiba, sendo posteriormente revogadas as prisões, muitas pelo próprio juiz. Nos desdobramentos da ação penal, houve absolvição por insuficiência de provas para condenação”, diz a nota enviada pela assessoria de imprensa do ex-juiz.

Nota da assessoria jurídica dos agricultores

A assessoria jurídica dos três agricultores enviou nota, após a publicação desta matéria, a respeito do posicionamento oficial do ex-juiz Sérgio Moro. A íntegra da nota:

“Em oposição ao que afirma o ex-juiz Sérgio Moro de que foi o responsável pela revogação de prisões dos acusados na Operação Agrofantasma, as prisões preventivas decretadas aos agricultores familiares Gelson Luiz de Paula, Roberto Carlos dos Santos e Nelson Macarroni foram revogadas pelo Superior Tribunal de Justiça (HC 281.998 – PR), em decisão da Ministra Maria Thereza de Assis Moura, e não pelo juiz. O ex-juiz apenas cumpriu a decisão do STJ. Segundo a decisão do STJ as imputações não ostentavam violência ou grave ameaça, além de que medidas cautelares menos incisivas poderiam ser aplicadas, vez que o encarceramento é medida extrema, desnecessária naquele processo”.

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2 comentários em “Presos sem necessidade por Moro em 2013, agricultores processam a União”

  1. Júlio Shiogi Honjo

    Por que a grande mídia, principalmente a paranaense, não propaga essa absurda ilegalidade cometida pelo juiz do caso? Omitem-se e colaboram para a manutenção da mentirosa probidade do agora ex-magistrado. A cada dia que passa comprova-se o conluio havido entre autoridades, parte da sociedade e a imprensa para promover um golpe no país e são responsáveis pela situação atual, com patentes prejuízos aos cidadãos trabalhadores e à nação.

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